domingo, 14 de outubro de 2012


nov182011
 
Pe. Louis Goyard, EP
Discorrer sobre anjos pareceria extravagante e pueril até alguns anos atrás. Não obstante, o tema está de volta com toda a força, em plena era do materialismo.
Junto com o renovado interesse pelas criaturas angélicas, muitas fantasias e erros se acrescentam àquilo que a Igreja ensina a respeito delas. Não é nossa intenção analisá-los aqui. Propomo-nos apenas investigar um tema que move em extremo nossa curiosidade, na tentativa de rasgar um pouco o véu que nos oculta o mundo dos puros espíritos: como eles se comunicam?
Seres imateriais, mas compostos
TWOQue os anjos são seres imateriais é algo hoje aceito pacificamente, embora não seja fácil de compreender. Temos tendência a “antropomorfizar” sua vida, transpondo para o plano celeste as circunstâncias de nossa existência terrena. Entretanto, nada há de mais distante da realidade.
Por isso mesmo, nos primeiros séculos da Igreja, o debate sobre a existência de um “corpo angélico” causou controvérsias entre os entendidos, e mesmo entre santos. Uma corrente teológica muito numerosa — na qual se inclui São Boaventura — defendia a tese de que os entes angélicos têm, em sua composição, alguma “matéria espiritual”, um corpo etéreo, extremamente sutil. Pois, argumentavam os defensores dessa corrente, como explicar sua individuação, contingência, o fato de serem criaturas compostas e estarem delimitados?[1] Mais ainda: se os anjos são puros espíritos, não seriam totalmente simples?[2]Como distingui-los de Deus?
A questão veio a ser esclarecida por um dos maiores luminares do pensamento: São Tomás de Aquino. Com singeleza e objetividade, ele clarificou ideias abstrusas e precisou conceitos ambíguos — às vezes, quase diríamos, infantis.
Notemos de passagem que ele foi apropriadamente cognominado de Doutor Angélico, título utilizado pela primeira vez por Santo Antonino de Florença (1389-1459)[3] e depois consagrado por São Pio V na bulaMirabilis Deus, de 1567, “talvez pelas suas virtudes, de modo particular pela sublimidade do pensamento e pureza da vida”, como observa o Papa Bento XVI[4].
Na Suma Teológica, São Tomás dedica todo um tratado ao tema dos anjos, discorre sobre eles também no tratado De Substantiis Separatis, no II Livro das Sentenças e em De Veritate, além de fazer esclarecedoras menções em várias outras obras.
De início, discordou da necessidade de haver um corpo angélico, assinalando que o conceito de “matéria espiritual” é de si contraditório e insustentável. Tal afirmação foi uma das que mais causaram polêmica no seu tempo e quase levou o Bispo de Paris, Étienne Tempier, a condená-lo como herege.
De outro lado, assinalou que todos os seres criados são necessariamente contingentes e compostos.
No caso dos entes corporais, há uma composição de matéria e forma. Mas existe uma composição anterior, inerente a toda criatura, a de essência e ato de ser (ou existência). Uma está para o outro numa relação de potência e ato[5]. Dessa maneira, embora nos anjos não haja matéria, são eles também compostos: sua essência se distingue realmente de seu ato de ser.
Ora, Deus é ato puro; n’Ele há identidade de essência e existência. Ele, explica o padre Bandera, “é absolutamente simples, e n’Ele não há nenhum tipo de composição. As criaturas não alcançam nunca a simplicidade própria de Deus e, consequentemente, implicam alguma composição. Mas para explicar esta composição não é necessário recorrer à matéria; a composição original, aquela inerente à criatura enquanto tal, é a de essência e existência”.[6]
Os anjos têm o ser por participação no Ser divino. Não existiam desde sempre, mas receberam em determinado momento o dom da existência, criados do nada. Isso, segundo a doutrina inovadora de São Tomás, já é suficiente para distinguir a criatura do Criador[7].
Ficava assim resolvido por São Tomás o problema referente à natureza angélica: uma criatura, por mais excelente que seja, é composta pelo menos de essência e existência; no Criador, a existência é idêntica à essência.
Como os anjos chegam ao conhecimento das coisas?
Ensina a Escolástica que todo conhecimento nos vem através dos sentidos. Assim, antes de nosso intelecto formar uma ideia sobre um objeto, intermedeiam os sentidos internos — senso comum, imaginação, memória, cogitativa —, organizando e preparando os dados brutos percebidos pelos sentidos externos, em representações imaginárias. Por fim o intelecto abstrai as características individuais do objeto particular, apreendendo sua essência, com a qual trabalhará para chegar a conceitos, raciocínios e juízos universais.FOUR
No processo de conhecimento humano há, pois, uma passagem do objeto particular conhecido para as ideias universais. Assim, se alguém, caminhando por uma rua, encontra de repente um animal, mesmo sem conhecer detalhes sobre ele (por exemplo, quando nasceu e quem é seu dono), saberá de imediato que se trata de um cão ou de um gato, por exemplo.
Depois de havermos conhecido vários cães, a essência canina está bem determinada em nossa mente por certas características as quais, sendo universais, aplicam-se a todos os entes daquela espécie. Por isso, a menos que haja alguma interferência (por exemplo, falta de boa iluminação no local), vendo um cão, saberemos que é um cão, quer se trate de um dálmata, um pastor alemão, um labrador ou um simples vira-latas, não importa seu tamanho, idade, cor ou outros traços individuais.
Nosso raciocínio trabalha, pois, com ideias universais. Por isso, entendemos perfeitamente uma notícia que diga: “Por determinação do Serviço Sanitário Estadual, todos os cães devem ser vacinados contra a raiva”. “Cães”, referindo-se à essência, designa todos os indivíduos da espécie canina.
No entanto, com o anjo o processo de conhecimento não pode dar-se da mesma maneira, uma vez que ele não tem corpo e, assim, não possui sentidos que captem os particulares.
Como, então, chega ele ao conhecimento das coisas?
Resumindo a doutrina de São Tomás a respeito, o professor Peter Kreeft afirma que “é próprio ao homem progredir na verdade por estágios, por meio de conceitos e de raciocínios até o conhecimento da verdade de um juízo”, enquanto que aos anjos é próprio conhecer “intuitiva e imediatamente, de uma vez, não por meio desse processo temporal”.[8]
Vejamos mais detidamente esses pontos.
As espécies (ideias) pelas quais os anjos conhecem as coisas não lhes vêm destas últimas. Assim, por exemplo, um anjo não precisa conhecer vários gatos para, abstraindo as características particulares de cada um, concluir na ideia de “gato”. O espírito angélico não está sujeito a um desenvolvimento gradual, mas começou a existir na plenitude de seu conhecimento. Nunca teve de aprender, no sentido próprio da palavra.
Em outros termos, no momento em que criou os anjos, Deus infundiu-lhes as ideias ou conceitos abstratos de todas as coisas, sem os quais eles não seriam capazes de conhecer as coisas particulares ou individuais. Quando um anjo “vê”, ou seja, aplica sua inteligência a algo novo, não adquire alguma ideia; apenas confere com o conceito universal presente já em seu intelecto.
Hierarquia piramidal e vertical
Entre os homens existe uma hierarquia que poderíamos chamar de piramidal, em que muitos dependem de um ou de alguns. Assim se dá numa família, na qual os filhos estão sujeitos aos pais; ou num país, onde os súditos dependem do monarca ou do Chefe de Estado. Na hierarquia familiar, os filhos têm uma igualdade relativa, não dependendo uns dos outros para fazer chegar aos pais seus desejos e questões. Evidentemente, a igualdade absoluta não é sustentável, pois um filho será mais inteligente ou mais forte — e, nesse aspecto, superior — que os outros. Em um nível mais elevado, tal desigualdade é que torna possível a constituição de uma sociedade.
Entre os anjos isso se passa de maneira diferente. Como cada um constitui uma espécie única, quanto mais elevado é o anjo, mais ricas são as ideias ou conceitos que lhe foram infundidos por Deus, ao criá-lo[9].
Poderíamos, talvez, imaginar que essa desigualdade fosse motivo de tristeza para os anjos inferiores. Entretanto, isso não se dá, pois as apetências, capacidades e glória de cada um são plenamente satisfeitas pelo próprio Criador, a partir do momento em que eles entraram na Visão Beatífica[10]. Não têm, portanto, possibilidade de sentimento de infelicidade. Pelo contrário, as qualidades dos anjos que lhes são superiores, constituem para eles motivo de admiração.
Como falam os anjos?
Postos estes esclarecimentos, podemos nos perguntar como se dá a “fala” dos anjos, e é São Tomás quem novamente nos responde: dá-se por iluminação e por locução.
FIVEDenomina-se iluminação o ato pelo qual um anjo superior dá a conhecer a um inferior alguma verdade sobrenatural de que teve conhecimento, graças à imediata revelação de Deus. Por exemplo, Deus manifestou diretamente a todos os seres angélicos a futura Encarnação do Verbo, mas não de modo igual: a uns comunicou mais, a outros menos, deixando aos anjos superiores o encargo de iluminar os inferiores, de modo que estes progredissem no conhecimento desse mistério até o dia de sua realização[11].
Conforme São Tomás, a iluminação é feita da seguinte maneira: em primeiro lugar, o anjo superior fortalece a capacidade de entender do anjo inferior; em segundo lugar, o superior propõe ao inferior aspectos particulares de verdades sobrenaturais que ele, anjo superior, “concebe de modo universal”.[12]
São Tomás ilustra esta doutrina dando o exemplo de um professor que, para ensinar uma matéria, divide-a em partes coerentes e ordenadas, acomodando-a à capacidade dos alunos. Evidentemente, estes terão um conhecimento fracionado, muito inferior ao do professor. Assim se passa com os anjos: “O anjo superior toma conhecimento da verdade segundo uma concepção universal, para cuja compreensão o intelecto do anjo inferior não seria suficiente”.[13] Para iluminar o inferior, o superior fragmenta e multiplica a verdade que ele próprio conhece de modo universal, tornando-a mais particular.
Esta forma de comunicação, por iluminação, só procede dos anjos superiores para os inferiores. Todavia, na locução, também os anjos inferiores falam aos superiores. Segundo o Doutor Angélico, a locução tem por finalidade manifestar algo interior àquele com quem se fala ou pedir-lhe alguma coisa: “Falar nada mais é do que manifestar a outro o próprio pensamento”.[14] Não se trata aqui de apresentar uma verdade sobrenatural, pois neste caso, teríamos a iluminação. Em outras palavras, toda iluminação é locução, mas nem toda locução é iluminação.
Evidentemente, a comunicação dos anjos entre si não se expressa com sons, gestos ou outro elemento material, pois sua natureza é só espiritual. Essa comunicação se dá por um ato de vontade, pelo qual um anjo dirige o pensamento ao outro, dando a conhecer conceitos que possui. Pode, inclusive, dar a conhecer algo a uns e não a outros, conforme queira.
Os anjos se comunicam também com Deus, nunca porém como o agente se dirige ao paciente ou, segundo a terminologia humana, o mestre ao discípulo. “O anjo fala a Deus — explica São Tomás —, seja consultando a divina vontade a respeito do que deve ser feito, seja admirando a excelência divina que ele nunca compreende a fundo”.[15]
O tema das conversas angélicas
Claro que o principal objeto de conversa dos anjos é Deus, pois toda criatura tende naturalmente a voltar-se para o Criador, sobretudo em se tratando de seres tão perfeitos como eles[16]. Além do mais, estando na Visão Beatífica, estarão sempre contemplando novos aspectos d’Ele durante toda a eternidade. Sendo Deus infinito, por mais que os anjos do Céu O vejam no seu todo, não O veem totalmente, o que é impossível a qualquer criatura.
Eles conversam também sobre os desígnios divinos a respeito do universo material, no qual o elemento mais importante é o homem. Não podem, pois, deixar de interessar-se enormemente pela ação divina na História; assim, os anjos superiores comunicam aos inferiores o que “veem” em Deus a tal propósito.
Poderíamos, pois, imaginar um diálogo no qual nosso anjo da guarda pergunta a um anjo mais elevado como compreender melhor nossa psicologia. Por exemplo, por que procedi de tal modo, por que deixei de agir em tal ou qual ocasião, etc. O anjo superior, além de dar ao anjo da guarda as explicações, acrescentaria uma orientação sobre como guiar nossa alma da maneira mais conforme ao plano de Deus.
Uma coisa é certa: nossos anjos da guarda estão constantemente conversando sobre nós com os anjos que lhes são superiores, de maneira que existe uma “cascata”, ou “cadeia”, de anjos interessados na santificação e salvação de cada um de nós.
Que tal pensamento contribua para aumentar nossa devoção aos santos anjos, esses gloriosos intercessores celestes, dos quais muitas vezes nos esquecemos!?

[1] BANDERA GONZÁLEZ, Armando. Introducción a las cuestiones 50 a 64. In: Suma Teológica. 4.ed. Madrid: BAC Maior, 2001, p.496.
[2] Sobre a simplicidade divina, lembremo-nos que no plano espiritual, ao contrário do que ocorre no plano material, quanto mais simples é algo, mais é perfeito. Cf. CREAN, Thomas. A Catholic replies to professor Dawkins. Oxford: Family Publications, 2008, p.29-32.
[3] CLÉMENT, André. La sagesse de Thomas d’Aquin. Paris: Nouvelles Editions Latines, 1983, p.171-173.
[4] Audiência Geral, 2/6/2010. Diversos autores assinalam que tal título é devido à acuidade de seu pensamento, como que angélico. CLÉMENT, op. cit., p.171; HEUSER, Herman Joseph. In: The American ecclesiastical review. 1923, v.LXVIII, p.92: “Mais propriamente por causa de seu extraordinário poder intelectual, que lhe permitia falar com a língua dos anjos”.
[5] SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q.50, a.2, ad3.
[6] BANDERA, op. cit., p.496.
[7] Idem, ibidem.
[8] KREEFT, Peter. Summa of the Summa. San Francisco: Ignatius, 1990, p.328.
[9] SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q.106, a.4, ad.1.
[10] Tudo o que temos referido a propósito da natureza angélica aplica-se, evidentemente, tanto aos anjos do Céu, confirmados em graça, quanto aos anjos decaídos. Claro está que, ao contrário destes últimos, os santos anjos, mesmo quando no estado de prova, nunca cederam a movimentos de inveja, seja em relação a Deus, seja em relação aos outros anjos.
[11] JOSEPH MACINTYRE, Archibald. Os anjos, uma realidade admirável. Rio de Janeiro: Revista Continente, 1983, p.255.
[12] SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., I, q.106, a.1.
[13] Idem, ibidem.
[14] Idem, I, q.107, a.1.
[15] Idem, I, q.107, a.3.
[16] É evidente que os santos anjos conversam sobre Deus transidos de amor, admiração, desejo de crescer no conhecimento d’Ele e servi-Lo, ao passo que os demônios são movidos por ódio e revolta: seu non serviam ecoa por toda a eternidade.

dez022011
 
big bang
viewPe. Eduardo Miguel Caballero Baza, EP
“Na atualidade parece que a ciência nunca será capaz de levantar o véu que encobre o mistério da criação. Para o cientista que durante toda a sua vida se guiou pela crença no poder da razão, esta história termina como um pesadelo. Ele escalou as montanhas da ignorância e está a ponto de chegar ao mais alto pico; quando consegue alcançar a última rocha, é recebido por um grupo de teólogos que ali estão sentados há séculos”.1
Esse testemunho pessoal de Robert Jastrow, renomado cientista norte-americano, fundador do Goddard Institute for Space Studies (GISS) da NASA, ilustra bem como a Teologia não está alheia às questões científicas, mas as explica e transcende.

Aspecto pouco conhecido da história científica

Os pioneiros das ciências naturais no século XVII, assim como muitos de seus continuadores nos séculos seguintes, eram homens profundamente religiosos, persuadidos de que suas investigações não passavam de uma contribuição para desvendar a obra do Criador.
Basta pensar nos importantes estudos do Bispo dinamarquês Beato Niels Stensen (1638-1686) sobre geologia e mineralogia, pelos quais ele é considerado o fundador da geologia moderna. Ou nos filhos espirituais de Santo Inácio de Loyola — entre os quais o padre Athanasius Kircher (1602-1680), erudito em inúmeros campos científicos; o padre Giovanni Battista Riccioli (1598-1671), cuja enciclopédia astronômica marcou época; o padre Francesco Maria Grimaldi (1618-1663), descobridor da difração da luz; o padre Ruggero Boscovich (1711-1787), considerado o criador da física atômica fundamental — que contribuíram significativamente para as conquistas da ciência e da técnica, e foram correspondentes assíduos de cientistas influentes de sua época.2
Depois desses pioneiros, não têm faltado católicos fervorosos na vanguarda dos mais diversos campos da ciência. O francês Augustin Louis Cauchy (1789-1857) — cujo nome figura inúmeras vezes nos livros de ciências exatas, física e engenharia — era católico convicto, membro da Sociedade de São Vicente de Paulo. Um dos maiores cientistas da História, Louis Pasteur (1822-1895), foi um católico exemplar em pleno século do positivismo ateu e do racionalismo agnóstico. Seu contemporâneo, o abade agostiniano austríaco Gregor Johann Mendel (1822-1884), é considerado o pai da genética. O físico italiano Alessandro Volta (1745-1827), inventor da pilha elétrica,3 era homem de Missa e Rosário diários, enquanto seu contemporâneo, o cientista francês André-Marie Ampère (1775-1836), fundador da eletrodinâmica,4 tem uma obra intitulada Provas históricas da divindade do Cristianismo. E muitos outros poderiam ser citados como exemplo até nossos dias.

BIG BANG

A ciência e a Fé se complementam

De outro lado, o Magistério Pontifício tem sido unânime em mostrar como ciência e Fé convergem para a única verdade, por vias diversas mas complementares.5
O Concílio Vaticano II confirmou isso, lembrando que as realidades profanas e as da Fé têm origem no mesmo Deus: “A investigação metódica em todos os campos do saber, quando levada a cabo de um modo verdadeiramente científico e segundo as normas morais, nunca será realmente oposta à Fé, já que as realidades profanas e as da Fé têm origem no mesmo Deus. Antes, quem se esforça com humildade e constância por perscrutar os segredos da natureza, é, mesmo quando disso não tem consciência, como que conduzido pela mão de Deus, o qual sustenta as coisas e as faz ser o que são”.6
Ora, para ser possível uma relação frutuosa entre ciência e Fé, é necessária a mediação de uma filosofia realista, reconhecedora de que as entidades materiais observadas pela ciência são reais, que existem independentemente do observador, que possuem uma racionalidade coerente, que estão governadas por leis determinadas e que formam um todo ordenado.
Diz-se que a sã filosofia é aquela que diz coisas evidentes, mas que não são ditas por ninguém; pois bem, essa é a filosofia realista, a filosofia de São Tomás de Aquino e de tantos outros pensadores católicos.

O cosmos: uma dimensão da realidade inatingível pela ciência

A ciência — mesmo quando se baseie numa filosofia realista e considere o universo como contingente — deve estar consciente de que nunca poderá revelar todos os mistérios do cosmos, por mais que progrida a técnica, pois há toda uma série de dimensões da realidade que escapam completamente a seu alcance. Por isso, a ciência jamais poderá demonstrar a existência de Deus nem tampouco negá-la; simplesmente não tem autoridade para se pronunciar sobre tal matéria.
Quem observa o céu estrelado com um mínimo de espírito contemplativo é naturalmente levado a formular a si mesmo uma série de perguntas para as quais a astrofísica não tem resposta: Por que existe o universo? Por que possui a ordem que observamos nele? É fruto de um projeto inteligente? Teve origem? Quando e como? Sempre foi assim como o vemos hoje?
A ciência procura dar resposta a essas e outras perguntas do gênero por meio da cosmologia, um ramo do saber que trata, de um lado, da formação do universo, de sua estrutura e evolução (aspecto físico ou científico), e de outro, de sua origem e finalidade (aspecto filosófico-teológico). Na realidade, a cosmologia é uma disciplina fronteiriça entre as ciências naturais, a Filosofia e a Teologia. É uma ciência da totalidade, que, entre outras coisas, busca a resposta à pergunta sobre a totalidade do universo no sentido ontológico. A resposta a essa pergunta, porém, não se encontra na totalidade física do universo, que é o objeto de estudo da cosmologia, mas fora dela; a totalidade do universo encontra sua explicação somente em uma Causa superior que transcende sua realidade física.
As questões relacionadas com a origem do universo e sua evolução, portanto, suscitam fortemente perguntas fundamentais como essas, que de um modo natural põem em relação à Fé e a ciência. Esta é a razão que me levou a escolher o Big Bang como tema para a tese de licenciatura em Teologia, na Faculdade de Teologia da Universidade Pontifícia Gregoriana, na especialidade de Teologia Fundamental, pois a Teologia não só tem o direito de dizer uma palavra no debate científico, mas, mais do que isso, sua voz é indispensável para se poder entender em profundidade a realidade do universo.
Influiu também poderosamente na minha escolha o Revmo. Pe. Paul Haffner, da diocese de Portsmouth (Grã Bretanha), licenciado em Física pela Universidade de Oxford e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, da qual é Professor convidado. Autor de mais de 30 livros e 150 artigos, estudou ele durante décadas as relações entre religião e ciência, com especial ênfase na cosmologia e na obra do Revmo. Pe. Stanley L. Jaki, OSB, que conhece em profundidade.
Por fim, não foi alheia a essa escolha minha formação acadêmica de Engenheiro Aeronáutico pela Universidade Politécnica de Madri, embora nunca tenha exercido a profissão, pois, logo após o término de meus estudos, tive a graça de dedicar-me inteiramente ao serviço da Igreja.

Aspectos filosóficos e teológicos da origem do universo

Hoje, os astrônomos sustentam quase unanimemente que o universo primitivo começou a expandir-se a uma grande velocidade — num processo tão rápido quanto violento, denominado “inflação cósmica” — faz uns 13 bilhões de anos, a partir de uma minúscula e incrivelmente quente “bola de fogo”. É o denominado “modelo standard” do universo, ou “modelo do Big Bang”.
Em torno desta concepção e de outros modelos cosmológicos, existe hoje em dia um aceso debate relacionado com os aspectos mais estritamente científicos, como a história térmica do universo, a causa do deslocamento para o vermelho dos espectros eletromagnéticos das radiações estelares, radiação cósmica de fundo de microondas, a suposta existência da matéria escura e da energia escura, a explicação da abundância relativa dos elementos químicos que se observa no universo, a descrição do nucleossíntese estelar, bem como dos processos de formação das estrelas e das galáxias, e tantos outros.
Mas o debate não se limita aos aspectos científicos da questão. Estão em jogo concepções filosóficas e teológicas da maior importância.
Se o modelo do Big Bang explica a origem do universo a partir do nada, que necessidade há de um Criador? Podem ser separadas a dependência temporal do universo e sua dependência ontológica em relação ao Criador? O cosmos é autossuficiente e conduzido exclusivamente por uma causalidade cega, ou obedece à amorosa Providência Divina? Como justificar, então, a existência de leis naturais imutáveis? Por outro lado, se Deus intervém na criação, que sentido têm os fenômenos puramente casuais? Como se harmonizam a autonomia das criaturas e sua dependência essencial do Criador, imanência e transcendência? Uma das variantes do modelo do Big Bang postula uma futura contração paulatina cada vez mais rápida do universo, culminando num colapso gravitacional sobre si mesmo. Quer isso dizer que o modelo do Big Bang prevê o fim do mundo?
Responder aqui a cada uma dessas perguntas alongaria demasiadamente esta matéria e me obrigaria a tratar de forma sumária um assunto rico e apaixonante. Proponho, portanto, voltar ao tema em outros artigos. Assim poderei compartilhar com nossos leitores a preparação de minha futura tese de doutorado. 
1 Cf. R. Jastrow. God and the Astronomers. New York: 1978, p. 116.
2 Entre outros com os quais mantinham frequente correspondência, cabe mencionar os seguintes: o matemático francês Pierre de Fermat (1601-1665), pai do cálculo diferencial; o astrônomo, matemático e físico holandês Christiaan Huygens (1629-1695), inventor do relógio de pêndulo; o alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), espírito multifacetado que formulou os princípios fundamentais do cálculo infinitesimal; ou o britânico Isaac Newton (1642-1727), que deduziu a lei da gravidade universal.
3 Em sua honra, chama-se “volt” a unidade de medida da tensão elétrica.
4 Em sua honra, denomina-se “ampère” a unidade de medida da intensidade da corrente elétrica.
5 Neste sentido, ver por exemplo, P. HAFFNER. Creazione e scienze. Roma: 2008, p. 1-60.
6 Constituição pastoral Gaudium et spes, 7/12/1965, n. 36.

jan112012
 

Pe David Ritchie_.jpgPe. David Edward Ritchie, EP
Desejando conduzir o homem à máxima semelhança com seu Criador, Deus infundiu-lhe na alma a sede de infinito. Ela lhe traz saudades da luz que iluminava seu espírito no Paraíso e nele acende um desejo de bem, beleza, e verdade que o arrebatam rumo à visão beatífica.
Entretanto, se desviada pelo orgulho, tal aspiração acabará levando- o ao delírio de querer usurpar o trono divino. A História nos relata inúmeros casos de ególatras – com as debilidades e limitações próprias da natureza humana, inclusive o pecado – ávidos de se fazerem adorar como deuses.
Quanto mais perseguiam esse objetivo, maior era sua frustração. Porque o homem jamais poderá satisfazer seu anseio pelo absoluto apoiando-se nas próprias forças, nem tentando alcançar um objetivo distinto daquele para o qual foi criado.
Deus realiza o que Eucaristia.jpgé impossível para as nossas forças
Deus quer, por certo, fazer de nós filhos seus. Mas a deificação do homem só pode dar-se em virtude da obra salvífica do Redentor e através da ação da graça, “verdadeira participação na natureza divina precisamente enquanto divina”.1
Este sublime paradoxo é assim comentado por um teólogo contemporâneo: “Embora seja próprio ao modo e à dignidade dos seres humanos que sejam divinizados (ad divina elevetur), por serem eles criados à imagem divina, contudo, uma vez que o bem divino excede infinitamente toda capacidade humana, o ser humano precisa ser assistido supernaturaliter para receber esse bem, o que acontece por alguma espécie de dom da graça”.2
A esse propósito, Mons. João Scognamiglio Clá Dias se pergunta: “Por que terá querido Deus acender labaredas de desejos irrealizáveis em nossos pobres corações? [...] Tratar-se-á de uma atitude pouco ou nada paternal d’Ele?”.3 E responde logo a seguir: “Jamais! Deus é a Bondade em substância. Ele quer muito nos fazer ‘deuses’.4
Bela prova dessa exuberante difusão do bem proveniente do Altíssimo é a própria obra da criação: “O sol não se cansa de nos enviar seu calor; as águas de nos fornecerem os peixes; a terra, seus frutos, etc. E sempre de forma superabundante. São seres minerais, vegetais, animais que, se fossem passíveis de felicidade, exultariam de entregar-se ao serviço dos homens”.5
Porém, as maravilhas do universo são apenas um pálido reflexo da infinita bondade do Criador, “que para resgatar-nos do pecado e reconciliar-nos com Ele, resolveu que seu Verbo Se encarnaria, entregando sua vida até a última gota de sangue: ‘E o Verbo Se fez carne e habitou entre nós’ (Jo 1, 14).
Anunciaçao.jpg
“Anunciação”, por João Reixach – Museu Nacional de
Arte da Catalunha, Barcelona (Espanha)
“Eis aí a solução de um problema de milênios: Deus realiza o que por nossas puras forças era impossível. Jamais poderíamos nos igualar a Deus por nossos próprios meios, por isso Ele mesmo Se reveste de nossa carne e nasce Divino Infante: Deus é Homem, e, n’Ele, o homem é Deus! É este o magnum mysterium que os coros cantam na noite de Natal”.6 Em Cristo o Criador “Se fez um de nós, igual a nós, para que pudéssemos ser d’Ele e iguais a Ele”.7
A Encarnação nos trouxe a vida da graça
A Encarnação pode, portanto, ser considerada como o início da divinização da natureza humana. Através dela, explica Santo Irineu, “o Verbo de Deus habitou no homem e fez-Se Filho do homem para habituar o homem a conhecer a Deus e habituar Deus a habitar no homem, segundo o beneplácito do Pai”.8 Mais ainda, ensina-nos o Catecismo da Igreja Católica, foi assumindo nossa natureza que Deus quis “comunicar sua própria vida divina aos homens, criados livremente por Ele, para fazer deles, no seu Filho único, filhos adotivos”.9
Numa das mais belas definições a respeito de sua missão, Jesus Cristo afirmou: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10, 10). Qual é essa vida, senão a da graça?
Inúmeros episódios dos Evangelhos atestam o fato de o Salvador tê-la conferido aos que d’Ele se aproximavam. Assim, voltando- Se para a mulher que ficara curada ao tocar-Lhe a orla do manto, Nosso Senhor a chama de “filha”, precisamente porque, naquele momento, devido à fé manifestada por ela, Ele lhe infundira sua vida divina: “Tem confiança, minha filha, tua fé te salvou” (Mt 9, 22).
De outro lado, as sentenças dirigidas ao paralítico: “teus pecados estão perdoados” (Mt 9, 2), e àquela que Lhe lavara os pés em casa de Simão: “perdoados te são os pecados” (Lc 7, 48), dão convincente prova de terem sido pronunciadas pelo Autor da graça, o único que pode por autoridade própria perdoar os pecados.
Unindo com sua costumeira clareza esses dois conceitos, afirma o padre Royo Marín: “Se precisamente enquanto homem opera seus milagres, perdoa os pecados e distribui a graça com liberdade, poder e independência soberanos, é porque sua humanidade santíssima é, de si, vivificante, ou seja, é instrumento apto para produzir e causar a graça em virtude de sua união pessoal com o Verbo Divino”.10
Alimento que deifica a alma
Essa vida divina que Cristo transmitiu durante sua passagem pela Terra, Ele continua a transmiti-la após a Ascensão. Infundida no Batismo, ela é aumentada e fortalecida pelos demais Sacramentos que ajudam a criatura a se aproximar da plenitude de perfeição para a qual foi chamada.
Porém, embora todos os Sacramentos produzam a graça, Nosso Senhor transmite-nos essa vida divina de modo todo especial na Eucaristia, ao dar-Se Ele mesmo às almas como nutrição.
Da excelência de tal alimento, afirma Scheeben, podemos “aferir quão elevado seja o valor da vida da graça por ele mantida e a grandeza da dignidade que ela nos faz merecer. O Sangue divino de Cristo, absorvido por nós, é uma prova de que, depois da regeneração, o sangue da vida divina circula em nossa alma e nos confere uma nobreza nova. Unir-se nosso corpo à substância do Corpo de Cristo não pode deixar de ser uma garantia de que, na realidade, nos fizemos participantes da natureza divina”.11
Com efeito, ao contrário do alimento comum, o qual é assimilado pelo organismo humano, na Eucaristia é Cristo Quem assume aquele que O recebe, ocorrendo em consequência a cristificação ou configuração do homem em Cristo, pelo amor.12 Pois, como afirma Gilson, “é pela caridade que se completa a participação do homem no divino”.13
Santissima Trindade.jpg
“Santíssima Trindade” – Altar-mor da Basílica da
Santíssima Trindade, Cracóvia (Polônia)
“Assim como o Pai, que Me enviou, vive, e Eu vivo pelo Pai, assim também aquele que comer a minha Carne viverá por Mim” (Jo 6, 57). A expressão “viverá por Mim” traduz, sob este prisma, uma profunda realidade: a alma que comunga é elevada acima das condições próprias à natureza e participa da infinita felicidade de Deus. Assim se aplica, com inteira propriedade, a afirmação de São Paulo: “Eu vivo, mas não eu: é Cristo que vive em mim” (Gal 2, 20). Daí se poder dizer com razão que a Eucaristia deifica a alma de quem a recebe com verdadeiro fervor.
Ora, dado serem inseparáveis as três Pessoas Divinas, como também o Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Jesus Cristo, junto com Este vêm à alma de quem comunga o Pai e o Espírito Santo, tornando-a de um modo todo especial em templo vivo da Santíssima Trindade, por meio de uma associação misteriosa, mas profundamente real, à vida trinitária.
Maria abriu para todas as almas as portas da divinização
A vontade divina é criadora. Assim, quando Jesus pronunciou as palavras “Isto é o meu Corpo” (Mc 14, 22; Lc 22, 19) e “Isto é meu Sangue” (Mt 26, 28; Mc 14, 24), estabelecendo a nova e eterna Aliança, operou esta sublime mudança: as substâncias pão e vinho cederam lugar à Divina Substância. E essa maravilha se tornou possível graças ao fiat pronunciado pelos lábios da Virgem Santíssima.
Desde sua concepção imaculada, a Santíssima Virgem possuía uma extraordinária união com Deus. No entanto, a partir do momento da Encarnação, ela alcançou um ápice inconcebível para nós, ao mesmo tempo em que abria as portas da divinização para todas as almas, com a instituição da Sagrada Eucaristia, antecipação da Páscoa definitiva na qual o homem divinizado terá sua sede de infinito plenamente saciada.
De que forma despontaram no fiat de Nossa Senhora os primeiros albores da Eucaristia?
Bela resposta a essa pergunta, no-la dá Santo Efrém: “Maria é o sacrário em que habitou o Verbo encarnado, símbolo da habitação do Verbo na Eucaristia. O mesmo Corpo de Jesus, nascido de Maria, nasceu para tornar-Se Eucaristia”.14
E o Beato João Paulo II explica com maior precisão e clareza: “Maria praticou a fé eucarística ainda antes de ser instituída a Eucaristia, quando ofereceu o seu ventre virginal para a Encarnação do Verbo de Deus. A Eucaristia, ao mesmo tempo que evoca a Paixão e a Ressurreição, coloca-se no prolongamento da Encarnação. E Maria, na Anunciação, concebeu o Filho divino também na realidade física do corpo e do sangue, em certa medida antecipando n’Ela o que se realiza sacramentalmente em cada crente, quando recebe, no sinal do pão e do vinho, o Corpo e o Sangue do Senhor”.15
Do seu lado, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, comentando as belas reflexões feitas sobre esse Mistério por São Luís Maria Grignion de Montfort em seu Tratado,16 afirma: “Assim como Deus formou o primeiro homem a partir da terra virgem, ainda livre das maldições que sobre ela caíram com o pecado original, também o Novo Adão foi formado, por obra do Espírito Santo, de uma terra imaculada, que é a carne virginal de Nossa Senhora”.17
A criatura por excelência divinizada por Cristo
Sobre a primeira efusão de graças na alma de Nossa Senhora, comenta Garrigou-Lagrange: “A graça habitual, que a Santíssima Virgem recebeu no próprio instante da criação da sua santa alma, foi uma plenitude na qual já se verificava aquilo que o Anjo Lhe diria no dia da Anunciação: ‘Ave cheia de graça’”.18
Acrescenta o teólogo dominicano que, no instante da Encarnação, Maria recebeu “um grande acréscimo da plenitude de graças”.19 E para tornar mais clara essa segunda plenitude, explica que a vinda do Verbo Encarnado ao seio de Maria produziu n’Ela tudo quanto pode realizar a mais fervorosa Comunhão, e mais ainda. Isso porque na Eucaristia a alma recebe Jesus todo inteiro, mas sob as aparências do pão, enquanto na Encarnação Ele”deu-Se todo inteiro a Maria sob sua verdadeira forma e por um contato imediato, o qual produzia por si mesmo, ex opere operato, mais e melhor do que o mais perfeito dos Sacramentos, um aumento de vida divina”.20
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“Santa Ceia”, pelo Fra Angélico – Museu de São Marcos, Florença (Itália)
Assim, Maria Santíssima foi por excelência a criatura divinizada por Cristo, não somente através da Eucaristia, mas também pela Presença Real da Segunda Pessoa da Trindade durante nove meses em seu ventre materno.
Efeitos da Presença Real de Jesus no seio de Maria
Pode-se, portanto, dizer que, no grande mistério da Encarnação, os efeitos da Presença Real de Jesus na alma de Nossa Senhora foram incomparavelmente superiores aos da Comunhão sacramental.
De fato, nesta, Cristo dá-Se aos homens para que estes recebam d’Ele a vida; na Encarnação, Ele “deu-Se a Maria, mas também viveu d’Ela, em sua natureza humana, pois d’Ela recebia o alimento e o desenvolvimento de seu Corpo, que se formava em seio virginal; em contrapartida, Ele alimentava espiritualmente a santa alma de Maria, aumentando n’Ela a graça santificante e a caridade”.21
Esse profundo relacionamento entre a Mãe humana e o Filho Divino é assim realçado pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira: “Pela lei das reciprocidades e pela lei das analogias, tudo indica que, à medida que Nossa Senhora ia dando seu corpo a Nosso Senhor, Ele ia dando, por assim dizer, seu espírito a Ela [...] e, portanto, durante todo o tempo da gestação, Ela teve progressos
e dons insondáveis, maravilhosos, que eram como uma espécie de símile da gestação que se dava n’Ela”.22
Se Cristo desejou estar desse modo em Maria e, por assim dizer, deixar- Se apropriar-Se por Ela, seria normal que Ele “tornasse participante da sua vida divina, acima de todas as outras criaturas, Aquela de quem quis receber a sua vida corpórea”.23 Por isso, a alma de Maria, “deificada, resplandecia da beleza do Pai, do esplendor do Verbo, dos ardores do Espírito de Amor, verdadeira Obra-Prima da natureza e da graça”.24
Anseio por tornar-Se divino tabernáculo
Quando cessou o contato físico contínuo de Jesus com sua Mãe, no nascimento, Ela deixou de ser um sacrário vivo de Cristo – de acordo com a expressão cunhada por João Paulo II – para tornar-Se o inefável paraíso de sua vida terrestre. Entretanto, o grande desejo de voltar a ser o divino tabernáculo sem dúvida acompanhou ininterruptamente a Mãe de Deus.
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Bento XVI, por ocasião de sua visita à Basílica
de Aparecida em 12 de maio de 2007
De que maneira seu Filho satisfaria tal anseio? É o mesmo Papa quem nos responde: “Receber a Eucaristia devia significar para Maria quase acolher de novo no seu ventre aquele Coração que batera em uníssono com o d’Ela”.25 Por isso, seria a santa Comunhão o momento ápice de reencontro interior com seu Filho. Após 33 anos de ardente espera, “aquele Corpo, entregue em sacrifício e presente agora nas espécies sacramentais, era o mesmo Corpo concebido no seu ventre!”.26
Por outro lado, afirma Jourdain: “Pode-se dizer, sem receio de enganar-se, que foi principalmente para sua Santíssima e Beatíssima Mãe que Nosso Senhor Jesus Cristo instituiu o Sacramento da Eucaristia. Sem dúvida, Ele o instituiu para toda a Igreja, mas, depois de Jesus, Maria é a parte principal da Igreja”.27 Sem mancha original ou atual, a alma de Maria Santíssima se encontrava em condições superiores à de qualquer outra criatura humana para receber o alimento eucarístico e, por isso, seus efeitos foram paradigmáticos nessa puríssima habitação.
Cada comunhão de Maria, comenta Roschini, “deveria, por certo, acender aqueles transportes de santo amor que sentiu desde o momento da Encarnação; deveria renovar-Lhe todas as alegrias da divina maternidade e todas as doçuras dos abraços divinos. Enquanto Ela estreitava amorosamente contra seu coração aquele Corpo divino, carne de sua carne, Jesus A inebriava cada vez mais com seu amor e A enriquecia com graças especialíssimas. Era a torrente da vida divina que se derramava no seio da Virgem e, enquanto enchia sua imensa capacidade, produzia n’Ela uma capacidade cada vez maior. Esta, por sua vez, exigia outro aumento de graça, cumulado por Jesus com uma generosidade proporcional ao amor que sentia por sua Mãe amadíssima”.28
Puríssimo espelho que restituía integralmente o divino amor
Sobre a união sacramental de Maria com Jesus, afirma Garrigou-Lagrange: “Esta comunhão era a fusão mais íntima possível, aqui na Terra, de suas duas vidas espirituais, como o reflexo da comunhão da santíssima alma de Cristo com o Verbo, ao qual está pessoalmente unido; ou também, como a imagem da comunhão das três Pessoas Divinas na mesma verdade infinita e na mesma bondade sem limites”.29
Esta união que, “de certa maneira, transforma a alma em Deus pelo conhecimento e o amor”,30 foi em Maria como um puríssimo espelho que não só restituía integralmente a Nosso Senhor a luz e o amor d’Ele recebidos, mas os condensava para refleti-los sobre as almas de todos os homens que se tornariam seus filhos pela ação da graça. A tal ponto Nossa Senhora foi divinizada que a Igreja não receia em aplicar a Ela a descrição, feita pela Escritura, da Sabedoria eterna, imagem e semelhança de Deus, superior a todas as criaturas: 31 “Ela é um sopro do poder de Deus, uma irradiação límpida da glória do Todo-poderoso; [...] é uma efusão da luz eterna, um espelho sem mancha da atividade de Deus, e uma imagem de sua bondade” (Sb 7, 25-26).
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Imagem Peregrina do Imaculado
Coração de Maria
Maria, arquétipo de piedade eucarística
Na Eucaristia, como vimos, o Salvador, que Se encarnou no seio de Maria há mais de vinte séculos, continua a ser a fonte de vida divina para a humanidade. E esta vida divina permite ao batizado conformar seus pensamentos e ações à vontade de Deus, passando a pensar e agir em consonância com Ele.
Ora, mais que a uma mera semelhança com o Criador, a vocação cristã nos chama a uma verdadeira união com Ele. Tal união será real na medida em que participemos dessa mesma vida divina, na qual fomos introduzidos pelo Batismo.
Vemos, de outro lado, após estas breves considerações, que a Eu caristia atingiu em Nossa Senhora plenamente e de modo insuperável todos os seus efeitos. De maneira singular, n’Ela se consumou a divinização da natureza humana, a ponto de se poder afirmar que “sua participação nos bens, na vida e na beatitude de Deus assenta na sua plena introdução substancial na família divina”.32
Portanto, é extremamente louvável prestar ouvidos aos contínuos apelos da Igreja, especialmente dos últimos pontífices, que convidam a adorar Jesus eucarístico por intermédio de sua Santa Mãe: “A Igreja, vendo em Maria o seu modelo, é chamada a imitá-La também na sua relação com este mistério santíssimo”33, afirmou o Beato João Paulo II. E para o Papa Bento XVI, é Ela o perfeito “modelo para cada um de nós saber como é chamado a acolher a doação que Jesus fez de Si mesmo na Eucaristia”.34
Aí está, para os homens de todos os tempos, o meio de, sem abandonar a condição humana, saciar sua sede de infinito e atingir a verdadeira divinização – de maneira humilde, submissa e amorosa -, tomando Maria como meio e arquétipo de piedade eucarística.
Notas:
1 ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología Moral para seglares – Moral fundamental y especial. 7.ed. Madrid: BAC, 1996, v.I, p.200.
2 KERR, OP, Fergus. After Aquinas. Versions of Thomism. Oxford: Blackwell, 2002, p.159.
3 CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. Sereis como deuses. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. Ano IV. N.48 (Dez., 2005); p.9.
4 Idem, ibidem.
5 Idem, ibidem.
6 Idem, ibidem.
7 Idem, ibidem.
8 SANTO IRINEU DE LIÃO. Adversus Hæreses, l.III, c.20, 2.
9 CIC 52.
10 ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología de la perfección cristiana. 9.ed. Madrid: BAC, 2001, p.79-80.
11 SCHEEBEN, Matthias Joseph. As maravilhas da graça divina. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1956, p.120.
12 Convém lembrar, com o Doutor Angélico, que “este Sacramento confere espiritualmente a graça com a virtude da caridade” (SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, III, q.79, a.1, ad.2).
13 GILSON, Étienne. Le Thomisme. Introduction à la philosophie de Saint Thomas d’Aquin. 6.ed. Paris: Vrin, 1997, p.424. 14 SANTO EFRÉM, apud Texto Base para o 48º Congresso Eucarístico Internacional, 2004, n.67.
15 BEATO JOÃO PAULO II. Ecclesia de Eucharistia, n.55.
16 Cf. SÃO LUÍS GRIGNION DE MONTFORT, Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem, n.16-21.
17 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 5/6/1972. Apud: CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. Pequeno Ofício da Imaculada Conceição comentado. 2.ed. São Paulo: Associação Católica Nossa Senhora de Fátima, 2010, v.I, p.246.
18 GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Réginald. La Mére du Sauveur et notre vie intérieure. Paris: Cerf, 1948, p.61
19 Idem, p.104.
20 Idem, ibidem.
21 Idem, ibidem.
22 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 23/12/1968.
23 SCHEEBEN, Matthias Joseph. A Mãe do Senhor. Lisboa: Aster, 1960, p.100-101.
24 PHILIPON, OP, Marie-Michael. A verdadeira fisionomia de Nossa Senhora. Rio de Janeiro: Olímpica, 1956, p.96.
25 BEATO JOÃO PAULO II, op.cit., n.56.
26 Idem, ibidem.
27 JOURDAIN, Zéphyr-Clément. Somme des grandeurs de Marie. Marie dans la Sainte Église. Paris: Hippolyte Walzer, 1900, v.IV, p.561.
28 ROSCHINI. Instrucciones marianas, apud ROYO MARÍN, OP, Antonio La Virgen María. Madrid: BAC, 1997, p.262.
29 GARRIGOU-LAGRANGE, op.cit., p.130.
30 Idem, p.131.
31 Cf. SCHEEBEN, A Mãe do Senhor, op. cit., p.90.
32 Idem, p.58.
33 BEATO JOÃO PAULO II, op. cit., n.53.
34 BENTO XVI. Sacramentum caritatis, n.33.
(Revista Arautos do Evangelho, Dez/2011, n. 120, p. 18 à 25)

mar142012
 
Corria o ano de 1879. O bom pároco da igrejinha da vila de Cap-de-la-Madeleine, em Quebec, Canadá, achava-se diante de um sério problema: o inverno tinha sido demasiadamente ameno… Snow Storm
Os que já experimentaram a intensidade do inverno na América do Norte, com seus ventos cortantes, nevadas colossais e temperaturas de gelar os ossos, por certo achariam estranho, ver o pároco todo posto em oração, não para agradecer uma estação tão suave, mas para implorar à Santíssima Virgem com ardor, frio, muito frio… 
Nossa Senhora, como verdadeira mãe, compreendeu o que ele queria e o atendeu generosamente. E essa é a nossa história, na qual poderemos venerar a solicitude e o zelo com que Maria guia seus filhos para a glória de Cristo Nosso Senhor.
Quando o Pe. Desilets recebeu, em 1864, uma igreja pequenina nessa província francófona, encontrou uma paróquia em crise. 
Por ter ficado muito tempo sem pároco, recebendo apenas a visita de padres viajantes que ministravam os sacramentos em numerosas igrejas daquele vasto território, muitos fiéis tornaram-se indiferentes à sua fé Católica. A capelinha, apesar de tão pequena, era ampla demais para o reduzido número de fiéis que ainda freqüentavam as Missas.
OUR LADYNessa lamentável situação, o novo pároco se dirigiu à Santíssima Virgem, sob a invocação de Nossa Senhora do Rosário. Zelosamente encorajava os seus paroquianos a rezarem o terço com piedade. Pregava a beleza e eficácia desta oração tão amada por Maria e consagrou a Ela a comunidade.
Os resultados aos poucos se fizeram sentir! A graça foi operando prodígios nas almas, e o sacerdote, passados 15 anos desde que chegara àquele local, viu-se diante de um sério e agradável problema: ter de construir uma igreja bem maior.
Em combinação com seus paroquianos, decidiu dar início ao projeto no inverno, quando o largo rio São Lourenço, que passava perto da igreja, se congela e sua superfície se transforma numa firme estrada de gelo, por onde podem passar os cavalos e trenós, carregando as pedras e outros materiais necessários para a construção; processo muito mais econômico do que o transporte em barcos.
Chegado o mês de novembro, o Pe. Desilets e seus paroquianos começaram a rezar pela rápida formação do gelo. Porém, um inverno inesperadamente ameno nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro foi adiando a realização do plano. O bom pároco, redobrando seu fervor, prometeu a Nossa Senhora que, se Ela obtivesse uma ponte de gelo, ele não só construiria uma nova igreja, mas preservaria a anterior e a dedicaria à sua honra, sob o título de Nossa Senhora do Rosário.
Chegou o mês de março e começaram as chuvas. Os paroquianos, com bom senso e pouca fé, sugeriram ao pároco que esperasse até o inverno seguinte.
Mas o sacerdote continuou rezando, cheio de confiança em Maria, argumentando que, se não construísse a igreja naquele ano, muitas Missas não seriam celebradas e, conseqüentemente, muitos pecados a mais talvez fossem cometidos.
A primavera já se aproximava, mas, curiosamente, ou quiçá miraculosamente, a temperatura de repente começou a cair. A festa de São José, padroeiro e protetor do Canadá, se aproximava. O padre coadjutor anunciou que haveria uma Missa solene no dia 19 de março em honra do casto esposo da Santíssima Virgem, na qual se pediria, por sua intercessão, a formação da ponte de gelo.
Após a Missa, juntamente com alguns paroquianos, o sacerdote foi examinar como estava o rio. Qual não foi a surpresa de todos, quando viram que o forte vento do dia anterior havia trazido grandes blocos de gelo, que se encaixaram perfeitamente de modo a formar uma ponte. Cheios de alegria, correram de volta para contar o ocorrido ao Pe. Desilets e a todo o povo. 
Com redobrada energia, a comunidade inteira pôs mãos à obra, aproveitando essa maravilha operada por Deus. O pároco, que havia rezado inúmeros terços pela obtenção do milagre, infelizmente não pôde estar junto a seus paroquianos, devido a uma súbita enfermidade, mas escreveu uma carta encorajando os fiéis, que lhes foi lida pelo padre coadjutor: “Vossas orações perseverantes estão sendo agora atendidas. Contra toda a expectativa, temos agora uma ponte pela qual podemos passar carregando as pedras para a nossa igreja. Vejam o poder da oração…”
O trabalho começou na própria festa de São José e continuou por alguns dias. Em uma só jornada, passaram 175 trenós cheios de pedras pela “Ponte do Rosário” (popularmente assim chamada a ponte de gelo). Todos se dedicavam ao labor sem interrupção. “Era extraordinário, um verdadeiro milagre! Algo verdadeiramente impossível!” — relatou um dos presentes, anos depois. 
O pároco convocou todas as mulheres e crianças para recitarem o terço, enquanto o projeto se transformava em realidade, e ele mesmo era visto muitas vezes, de terço na mão, rezando diante de uma imagem de Nossa Senhora, dentro da igreja. Os homens costumavam rezar inúmeras “Ave-Marias” enquanto trabalhavam.
Por fim, no preciso momento em que se completou a quantidade de pedras necessárias para a construção da nova igreja, a ponte começou a se desfazer. Então, a ação sobrenatural tornou-se evidente.
Na festa do Santo Rosário do ano seguinte, a nova igreja foi inaugurada e a velha igrejinha anterior passou a ser conhecida como capela do Santo Rosário, tornando-se rapidamente um local de peregrinação. 
Contudo, o Pe. Desilets ansiava por mais um sinal do Céu, que confirmasse estarem seus anseios de acordo com os desejos de Nossa Senhora.
No dia da dedicação oficial da capela em louvor a Maria, o sacerdote estava rezando diante da imagem de Nossa Senhora do Rosário, quando algo extraordinário aconteceu. O fato, presenciado por várias pessoas, foi assim descrito por uma das testemunhas: “A imagem da Virgem, cujos olhos estão voltados para baixo, repentinamente os levantou e permaneceu longo tempo com eles totalmente abertos. O olhar da Virgem era firme e voltado  para frente. Não poderia ser uma ilusão, pois a face d’Ela estava inteiramente iluminada, devido aos brilhantes raios do sol que entravam pelas janelas, os quais, aliás, iluminavam o santuário todo. Os olhos bem formados eram negros e em admirável harmonia com as feições da sua face.” OL of the cape
Estava concedido o sinal! Nossa Senhora assim mostrava a seus filhos canadenses e aos do mundo inteiro, que Ela não só atende os pedidos feitos através de recitação do Rosário, mas também acompanha, com um vivo olhar maternal, aqueles que a Ela recorrem com confiança. 
Cap-de-la-Madeleine tornou-se o Santuário Nacional do Canadá, tonificando dessa forma a devoção a Nossa Senhora do Rosário, magnífica invocação d’Aquela que sempre será a medianeira universal de todos os fiéis católicos.