terça-feira, 24 de julho de 2012


Os dons do Espírito Santo

Em síntese: Os dons do Espírito Santo são como “receptores” aptos a captar os impulsos do Espírito mediante os quais o cristão se encaminha para a perfeição em estilo novo ou com a eficácia que o próprio Deus lhe confere. Possibilitam ao cristão ter a intuição profunda do significado das verdades reveladas por Deus assim como de cada criatura. Proporcionam também tomadas de atitude que nem a razão natural nem as virtudes humanas, sujeitas sempre a hesitações e falhas, conseguiriam  indicar ou efetivar.
Para ilustrar o que são os dons, pode-se recorrer à imagem de um barco que navega: se é movido a remos, avança  lenta e penosamente, com grande esforço para os remadores. Caso, porém, estes desdobram as velas do barco para que capte o sopro dos ventos favoráveis, os remadores descansam e o barco progride em estilo novo segundo velocidade “sobre-humana”. – Ora o barco movido ao sopro do vento que bate contra as velas, é imagem do cristão impelido pelo Espírito, segundo medidas divinas, para a meta da sua santificação.
Os dons do Espírito Santo são sete, segundo a habitual recensão dos teólogos: sabedoria, entendimento, ciência, conselho, fortaleza, pie­dade, temor de Deus. Para se beneficiar da ação do Espírito Santo, o cristão deve dispor-se de duas maneiras principais: a) cultivando o amor, pois é o amor que propicia afinidade com Deus e, por conseguinte, torna o cristão apto a ser movido pelo Espírito de Deus; b) procurando jamais dizer um Não consciente e voluntário às inspirações do Espírito. Quem se acostuma a viver assim, cresce mais velozmente na sua estatura definitiva e se configura mais fielmente ao Cristo Jesus.
*  *  *
Em nossos dias a renovação da oração e da espiritualidade cristãs apela freqüentemente para a ação do Espírito Santo nos corações. Muitos fiéis se tornam conscientes de que “ninguém pode dizer “Jesus Cristo é o Senhor” senão sob a moção do Espírito Santo” (cf. 1Cor 12, 3), sabem cada vez mais que “todos os que são movidos pelo Espírito de Deus, são filhos de Deus” (cf. Rm 8, 14). A consciência destas verdades vem despertando cada vez mais a atenção para a teologia espiritual. Épois, oportuno procurarmos conhecer melhor as maneiras como o Espírito Santo age nos corações, descrevendo os seus dons e o significado destes na vida dos filhos de Deus.
1. Que são os dons do Espírito Santo?
1. Do inicio, é preciso propor a distinção que a Teologia costuma fazer entre dons e carismas(embora a palavra charisma em grego sig­nifica dom).
Por carismas entendem-se graças especiais pelas quais o Espíri­to Santo torna os cristãos aptos a tarefas e funções que contribuem para o bem ou o serviço da comunidade: assim seriam o dom de profecia, o das curas, o das línguas, o da interpretação das línguas… Os carismas têm por vezes (não sempre) índole extraordinária, como no caso de certas curas ou da glossolalia.
Por dons compreendem-se faculdades outorgadas ao cristão para seguir mais seguramente os impulsos do Espírito no caminho da perfeição espiritual. Os dons e seus efeitos são discretos, não chamando a atenção do público por façanhas portentosas.
2. Para entender melhor o que sejam os dons do Espírito, recorra­mos a uma analogia:
Quando uma criança nasce para a vida presente, é dotada por Deus de tudo que é necessário à sua existência humana: recebe, sim, um or­ganismo completo e uma alma portadora de faculdades típicas do ser humano. Como se compreende, esse conjunto ainda não esta plena­mente desenvolvido quando o bebê vem ao mundo, mas é certo que a criança possui tudo que constitui a pessoa humana.
Ora algo de análogo se dá na vida espiritual. Diz-nos Jesus que renascemos da água e do Espírito Santo pelo batismo (cf. Jo 3, 5). Este renascer importa receber uma vida nova, a vida dos filhos de Deus, trazida pela graça santificante. Essa vida nova tem suas faculdades próprias, que são:
1) as virtudes infusas
a) teologais (fé, esperança, caridade): virtudes que nos põem em contato imediato com Deus;
b) morais (prudência, justiça, temperança, fortaleza): virtudes que orientam o comportamento do cristão frente aos valores deste mundo;
2) os dons do Espírito Santo, “receptáculos” próprios para captar as moções do Espírito Santo.
Importa salientar bem a diferença entre as virtudes infusas e os dons do Espírito  Santo.
As virtudes infusas são ditas infusas porque não adquiridas pelo homem. São princípios de reta outorgados ao cristão juntamente com a graça santificante, para que se comporte não apenas como ser racional, mas como filho da Deus, elevado a ordem sobrenatural1. Os critérios de conduta do cristão são as grandes verdades da fé ou da ordem sobrenatural (que nem sempre coincidem com os da razão); por isto é que, ao renascer como filho de Deus, todo homem recebe os respectivos princípios de conduta nova, que são as virtudes infusas. Destas, três se orientam diretamente para Deus (a fé, a esperança e a caridade) e quatro se orientam para o reto uso dos bens deste mundo (prudência, justiça, temperança, fortaleza). Quando o cristão age mediante as virtu­des infusas, é ele mesmo quem age segundo moldes humanos, limitados, lutando contra os obstáculos que geralmente a prática do bem encontra; de maneira lenta e trabalhosa o cristão cresce na fé, na caridade, na temperança, na fortaleza…, estando sempre sujeito a contradizer-se ou a cometer um ato incoerente com tais virtudes.
É sobre este fundo de cena que se devem entender os dons do Espírito Santo. Estes podem ser comparados a faculdades novas ou “antenas” que nos permitem apreender moções do Espírito Santo em virtude das quais agimos segundo um estilo novo, certeiro, firme, sem hesitação alguma e com toda a clarividência. Esta afirmação pode-se tornar mais clara mediante algumas comparações:
a) Imaginemos um barco que navega a remos… Adianta-se lenta­mente e com grande esforço e fadiga por parte dos remadores. Caso, porém, este barco tenha velas dobradas, admitamos que os remadores resolvam desdobrá-las, a fim de captar o vento que lhes é favorável. Em conseqüência, os marujos deixarão de remar, e o mesmo barco será movido a velocidade “sobre-humana”, de maneira nova a muito mais ve­loz do que quando movido a remos.
Ora o “mover-se a remos” corresponde ao esforço humano (sempre prevenido pela graça) para progredir na prática do bem mediante as virtudes infusas. O “deixar-se mover pelo vento que bate nas velas des­dobradas”, corresponde ao progresso provocado pela ação direta do Espírito Santo, que move os seus dons (= velas) em nós; progredimos então muito mais rapidamente segundo um estilo novo.
b) Eis outra comparação: admitamos um pintor genial que se dispõe a realizar uma obra-mestra. Para iniciar, ele confia aos discípulos mais adiantados o trabalho de preparar a tela, combinar as cores e esquematizar o quadro. Quando tudo está preparado e começa a parte mais importante da obra, o próprio mestre traça as linhas finíssimas de sua obra, revelando o seu gênio e cristalizando a sua inspiração. – De maneira análoga, o Espírito traça no íntimo de cada cristão a imagem do Cristo Jesus. Os inícios desta tarefa, Ele os realiza mediante a nossa colaboração, permitindo-nos agir segundo os nossos moldes humanos (ou mediante as virtudes infusas). Quando, porém, se trata dos traços mais típicos do Cristo na alma humana, o próprio Espírito assume a tare­fa da os delinear utilizando instrumentos especialmente finos a preciosos, que são seis dons.
Exemplificando, diremos: o homem prudente que, para a orientação de seus atos, só dispusesse de suas qualidades naturais e da virtude infusa da prudência, acertaria realmente, mas com grande lentidão, depois de várias tentativas. A prudência humana é insegura e tímida, mesmo quando acerta. – Ao contrário, quem age sob o influxo do dom do conselho, que corresponde à virtude da prudência, descobre de maneira rápida, certeira e firme o que deve fazer em cada caso.
Eis outro exemplo: quando o cristão se eleva, pela luz da fé, ao conhecimento de Deus, ele o faz de maneira imperfeita e laboriosa, re­correndo a imagens que são, ao mesmo tempo, claras e obscuras. – Dado, porém, que o cristão seja movido pelo Espírito mediante os dons de sabedoria e inteligência, ele contempla Deus e seu plano salvífico numa lúcida concatenação de idéias em poucos instantes e com grande sabor espiritual (em vez dos esforços exigidos pela virtude da fé).
As normas das virtudes são diferentes das normas  dos dons.  Quem age sob o influxo das virtudes, segue a norma do homem iluminado pela luz de Deus. Mas quem age sob o influxo dos dons do Espírito, segue a norma do próprio Deus participada ao homem.
3. Note-se que os dons do Espírito não são privilégio dos santos. Todos os cristãos os recebem no Batismo. Nem são necessários apenas às grandes obras, mas tornam-se indispensáveis à santificação do cristão mesmo na vida cotidiana.
O cristão pode permitir cada vez mais a ação do Espírito Santo em sua vida mediante os dons, caso se dedique especialmente ao cultivo das virtudes (principalmente da caridade) e se torne mais e mais dócil às inspirações do Espírito Santo. A prática do amor é importante, pois é o amor que nos comunica particular afinidade com Deus, adaptando-nos ao modo de agir do próprio Deus.
Procuramos agora penetrar no sentido próprio de cada um dos dons do Espírito.
2. Os dons em particular
A Tradição cristã costuma enunciar sete dons do Espírito, baseando-se no texto de Is 11,1-3 traduzido para o grego na versão dos LXX:
” 1 Brotará uma vara do tronco de Jessé
E um rebento germinará das suas raízes.
2E repousará sobre ele o espírito do Senhor:
Espírito de sabedoria e entendimento,
Conselho e fortaleza,
Ciência e temor de Deus,
3Piedade…”
O texto original hebraico, em lugar de piedade, dá a ler; “Sua inspi­ração estará no temor doSenhor“. Enumerando seis ou sete dons do Espírito, o texto bíblico não tenciona esgotar a realidade dos mesmos: estes são tantos quantos se fazem necessários para que o Espírito leve o cristão à perfeição definitiva. Os sete dons enumerados pelo texto dos LXX e pela Tradição vêm a ser, sem dúvida, os principais. Distingamo-los de acordo com a faculdade humana em que cada qual se situa:
Intelecto: ciência, entendimento, sabedoria, conselho.
Vontade: piedade.
Apetite irascível: fortaleza.
Apetite de cobiça: temor de Deus.
Passemos agora à análise de cada qual de per si.
2.1. Ciência
A ciência humana perscruta o universo e seus fenômenos, procu­rando as causas imediatas destes e concatenando-as entre si para ter uma explicação mais ou menos clara da realidade.
Ora o dom da ciência, embora não defina a natureza e as proprie­dades físicas ou químicas de cada criatura, faz que o cristão penetre na realidade deste mundo sob a luz de Deus, vê cada criatura como reflexo da sabedoria do Criador e como aceno ao Supremo Bem.
Mais: o dom da ciência leva o homem a compreender, de um lado, o vestígio de Deus que háem cada ser criado, e, de outro lado, a exigüidade ou insuficiência de cada qual.
Vestígio de Deus… São Francisco de Assis soube ouvir e procla­mar o canto das criaturas  ao Senhor. As flores, as aves, a água, o fogo, o sol… tudo lhe era ocasião de contemplar e amar a Deus.
Exigüidade… Toda criatura, por mais bela que seja, é sempre limi­tada e insuficiente para o coração humano. Este foi feito para o Bem infinito e só neste pode repousar. Percebendo isto após uma vida leviana, muitos homens e mulheres se converterem radicalmente a Deus. Tal foi o caso de S. Francisco Borja (+ 1572), que ao contemplar o cadáver da rainha Isabel, exclamou: “Não voltarei a servir a um senhor que possa morrer!” Tal foi outrossim o caso de S. Silvestre (+ 1267)… Estes cometeram a “loucura” de tudo deixar a fim de possuir mais plenamente uma só coisa: o Reino de Deus ou a presença do próprio Deus.
O dom da ciência ensina também a reconhecer melhor o significado do sofrimento e das humilhações; estes “contra-valores”, no plano de Deus, têm o valor de escola que liberta e purifica o homem. Configuram o cristão a Jesus Cristo, concedendo-lhe um penhor de participação na glória do próprio Senhor Jesus. Se não fora o sofrimento, muitos e muitos homens não sairiam de sua estatura anã e mesquinha,… nunca atingiriam a plenitude do seu desenvolvimento espiritual.
São estes alguns dos frutos do dom da ciência.
2.2.   Entendimento ou inteligência
A palavra “inteligência” é, segundo alguns, derivada de intellegere = intuslegere, ler dentro, penetrar a fundo.
Na ordem natural, entendemos (intelligimus) quando captamos o âmago de alguma realidade. Na linha da fé, paralelamente entender é penetrar, ler no íntimo das verdades reveladas por Deus, é ter a intuição do seu significado profundo. Pelo dom do entendimento, o cristão contempla com mais lucidez o mistério da SS. Trindade, o amor do Redentor para com os homens, o significado da S. Eucaristia na vida cristã….
A penetração outorgada pelo dom da inteligência (ou do entendi­mento) difere daquela que o teólogo obtém mediante o estudo; esta é relativamente penosa e lenta; além do que, pode ser alcançada por quem tenha acume intelectual, mesmo que não possua grande amor. Ao contrário, o dom da inteligência é eficaz mesmo sem estudo; é dado aos pequeninos e ignorantes, desde que tenham grande amor a Deus.
Para ilustrá-lo, conta-se que um irmão leigo franciscano disse certa vez a S. Boaventura (+ 1274), o Doutor Seráfico: “Felizes vós, homens doutos, que podeis amar a Deus muito mais do que nós, os ignorantes!” Respondeu-lhe Boaventura: “ Não é a doutrina alcançada nos livros que mede o amor, uma pobre velha ignorante pode amar a Deus mais do que um grande teólogo, se estiver unida a Deus”. O irmão compreendeu a lição e saiu gritando pelas ruas: “Velhinha ignorante, você pode amar a Deus mais do que o mestre Frei Boaventura!”
O irmão dizia a verdade. Na ordem natural, é compreensível que o amor brote do conhecimento. Na ordem sobrenatural, porém, pode acontecer o inverso: é o amor que abre os olhos do conhecimento. Os que mais amam a Deus, são os que mais profundamente dissertam sobre Ele.
Como frutos do dom do entendimento, podemos enunciar as intuições das verdades da fé que são concedidas a muitos cristãos durante o seu retiro espiritual ou no decurso de uma leitura inspirada pelo amor a Deus. O “renascer da água e do Espírito”, a imagem da videira e dos ramos, o “seguir a Cristo”  tomam então clareza nova, apta a transfor­mar a vida do cristão.
O dom do entendimento manifesta também o horror do pecado e a vastidão da miséria humana. Por mais paradoxal que pareça, é preciso observar que os santos, quanto mais se aproximaram de Deus (ou quanto mais foram santos), tanto mais tiveram consciência do seu pecado ou da sua distância daquele que é três vezes santo.
Em suma, o dom do entendimento faz ver melhor a santidade de Deus, a infinidade do seu amor, o significado dos seus apelos e também… a pobreza, não raro mesquinha, da criatura que se compraz em si mesma, em vez de aderir corajosamente ao Criador.
2.3.   O dom da sabedoria
Na ordem natural do conhecimento, a inteligência humana não se contenta com noções isoladas, mas procura reunir suas concepções numa síntese sistemática, de modo a concatená-las numa visão harmoniosa. A mente humana procura atingir os primeiros princípios e as causas  supremas de toda a realidade que ela conhece.
Ora a mesma sistematização harmoniosa ocorre também na ordem sobrenatural. O dom da ciência e o entendimento já proporcionam uma penetração profunda no significado de cada criatura e de cada verdade revelada respectivamente; oferecem também uma certa síntese dos objetos contemplados, relacionando-os com o Supremo Senhor, que é Deus. Todavia o dom que, por excelência, efetua essa síntese harmoniosa e unitária, é o da sabedoria. Esta abrange todos os conhecimentos do cristão e os põe diretamente sob a luz de Deus, mostrando a grandeza do plano do Criador e a insondabilidade da vida daquele que é o Alfa e o Ômega de toda a criação.
Mais: o dom da sabedoria não realiza a síntese dos conhecimentos da fé em termos meramente intelectuais. Ele oferece um conhecimento sápido ou saboroso da verdade1 …Saboroso ou deleitoso, porque se deriva da experiência do próprio Deus feita pelo cristão ou da afinidade que o cristão adquire com o Senhor pelo fato de mais a mais amar a Deus. Uma comparação ajudará a compreender tal proposição: para conhecer o sabor de uma laranja, posso consultar, intelectual e cientificamente, os tratados de Botânica; terei assim uma noção aproximada do que seja esse sabor. Mas a melhor via para conseguir o objetivo será, sem dúvida, a experiência da própria laranja que se faz pelo paladar. Os resultados do estudo meramente intelectual são frios e abstratos, ao passo que as vantagens da experiência são concretas e saborosas.
Ora, na verdade, os dons da ciência e do entendimento fazem-nos conhecer principalmente por via de amor ou de afinidade com Deus. Todavia é o dom da sabedoria que, por excelência, resulta dessa conaturalidade ou familiaridade com o Senhor. Ele se exerce na proporção da íntima união que o cristão tenha com o Senhor Deus. “O dom da sabedoria faz-nos ver  com os olhos do Bem-amado”, dizia um grande místico; a partir da excelsa atalaia que é o próprio Deus, contemplamos todas as coisas quando usamos o dom da sabedoria.
Estas verdades dão a ver quanto nesta vida importa o amor de Deus. É este que propicia o conhecimento mais perspicaz e saboroso do mesmo Deus (o que não quer dizer que se possa menosprezar o estudo, pois, se o Criador nos deu a inteligência, foi para que a apliquemos à verdade por excelência, que é Deus). Aliás, observam muito a propósito os teólogos: veremos a Deus face-a-face por toda a eternidade na proporção do amor com que o tivermos amado nesta vida. O grau do nosso amor, na hora da morte, será o grau da nossa visão de Deus na vida eterna ou por todo o sempre. É por isto que se diz que o amor é o vínculo ou o remate da perfeição (cf. Cl 3, 14). “No ocaso de sua vida, cada um de nós será julgado na base do amor”, diz S. João da Cruz.
2.4.  Conselho
Afirmam os teólogos que Deus não deixa faltar às suas criaturas o que lhes é necessário, nem é propenso a dons supérfluos, pois Deus tudo faz com número, peso e medida (cf. Sb 11, 20). Em tudo resplandece a sua sabedoria. Por isto é que Deus é providente, ou seja, Ele  providencia os meios para que cada criatura chegue retamente ao seu fim devido.
Ora acontece que, para realizarmos determinada atividade, exercemos um processo mental que tem por objetivo examinar cuidadosamente não só a conveniência dessa atividade, mas também todas as circunstâncias em que ela se deve desenrolar. Muitas vezes esse processo se efetua sem que dele tomemos plena consciência. Quanto, porém, nos vemos diante de uma tarefa rara ou mais exigente do que as de rotina, o processo deliberativo é mais intenso e, por isto, se torna mais consciente; a mente se esforça por ver claro e fazer a opção mais adequada, sem que, porém, o consiga de imediato. Não raro é necessário recorrer ao conselho de outra pessoa mais experimentada.
É por efeito da virtude (natural e infusa) da prudência que cada cristão delibera sobre o que deve e não deve fazer. É a prudência que avalia os meios em vista do respectivo fim.
Pois bem. Em correspondência à virtude da prudência, existe um dom do Espírito Santo, chamado “dom do conselho”. Este permite ao cristão tomar as decisões oportunas sem a fadiga e a insegurança que muitas vezes caracterizam as deliberações da virtude da prudência. Esta por si não basta para que o cristão se comporte à altura da sua vocação de filho de Deus,… vocação que exige simultaneamente grande cautela ou circunspecção e extrema audácia ou coragem. Nem sempre a virtude humana entrevê nitidamente o modo de proceder entre polos antitéticos. A criatura, limitada como é, nem sempre consegue conhecer adequadamente o momento presente, menos ainda é apta a prever o futuro e – ainda – sente dificuldade em aplicar os conhecimentos do passado à compreensão do presente e ao planejamento do futuro. É preciso, pois, que o Espírito Santo, em seu divino estilo, lhe inspire a reta maneira de agir no momento oportuno e exatamente nos termos devidos.
Assim o dom do conselho aparece como um regente de orquestra que coordena divinamente todas as faculdades do cristão e as incita a uma atividade harmoniosa e equilibrada. Imagine-se com que circunspecção (cautela e audácia) um maestro rege os múltiplos instrumentos de sua orquestra: assinala a cada qual o momento preciso em que deve entrar e os matizes que deve dar à sua melodia. Assim faz o Espírito mediante o dom do conselho em cada cristão.
Diz a Escritura que há um tempo exato para cada atividade1;
fora desse momento preciso, o que é oportuno pode tornar-se inoportuno.
Ora nem sempre é fácil discernir se é oportuno falar ou calar, ficar ou partir, dizer Sim ou dizerNão. Nem as pessoas prudentes, após muito refletir, conseguem definir com segurança o que convém fazer. Ora é precisamente para superar tal dificuldade que o Espírito move o cristão mediante o dom do conselho.
2.5. Piedade
Todo homem é chamado a viver em sociedade, relacionando-se com Deus e com os seus semelhantes. Requer-se que esse relacionamento seja reto ou justo. Por isto a virtude da justiça rege as relações de cada ser humano, assumindo diversos nomes de acordo com o tipo de relacionamento que ela deve orientar: é justiça propriamente dita, sempre que nos relacionamos com aqueles a quem temos uma dívida rigorosa; a justiça se torna religião desde que nos voltemos para Deus; é piedade, se nos relacionamos com nossos pais, nossa família ou nossa pátria; é gratidão, em relação aos benfeitores.
Ora há um dom do Espírito que orienta divinamente todas as relações que temos com Deus e com o próximo, tornando-as mais profundas e perfeitas: é precisamente o dom da piedade. São Paulo implicitamente alude a este dom quando escreve: “Recebestes o espírito de adoção filial, pelo qual bradamos: “Abá, ó Pai” (Rm 8, 15). O Espírito Santo, mediante o dom da piedade, nos faz, como filhos adotivos, reconhecer Deus como Pai.
E, pelo fato de reconhecermos Deus como Pai, consideramos as criaturas com olhar novo, inspirado pelo mesmo dom da piedade.
Examinemos de mais perto os efeitos do dom da piedade.
Frente a Deus ele nos leva a superar as relações de “dar e receber” que caracterizam a religiosidade natural; leva a não considerar tanto os benefícios recebidos da parte de Deus, mas, muito mais, o fato de que Deus é sumamente santo e sábio: “Nós vos damos graças por vossa grande glória”, diz a Igreja no hino da Liturgia eucarística; é, sim, próprio de um filho olhar a honra e a glória de seu pai, sem levar em conta  os benefícios que ele possa receber do mesmo. É o dom da piedade que leva os santos a desejar, acima de tudo, a honra e a glória de Deus “… para que em tudo seja Deus glorificado”, diz São Bento, ao passo que S. Inácio de Loiola exclama: “… para a maior glória de Deus”. É também o dom da piedade que desperta no cristão viva e inabalável confiança em Deus Pai,… confiança e entrega das quais dá testemunho S. Teresinha de Lisieux na sua doutrina sobre a infância espiritual.
O dom de piedade não incita os cristãos apenas a cumprir seus deveres para com Deus de maneira filial, mas leva-os também a experimentar interesse fraterno para com todos os seus semelhantes. Típico exemplo deste sentimento encontra-se na vida de S. Francisco de Assis: quando este, certo dia, sonhando com as glórias de um cavaleiro medieval, avistou um leproso, sentiu-se impelido a superar qualquer repugnância e a dar-lhe o ósculo que exprimia a fraternidade de todos os homens entre si.
O dom de piedade, tornando o cristão consciente de sua inserção na família dos filhos de Deus, move-o a ultrapassar as categorias do direito e do dever, a fim de testemunhar uma generosidade que não regateia nem mede esforços desde que sirva aos irmãos. É o que manifesta o Apóstolo ao escrever: “Quanto a mim, de bom grado me despenderei, e me despenderei todo inteiro, em vosso favor” (2Cor 12, 15).
2.6. Fortaleza
A fidelidade à vocação cristã depara-se com obstáculos  numerosos, alguns provenientes de fora do cristão; outros, ao contrário, do seu íntimo ou das suas paixões. Por isto diz o Senhor que “o Reino dos céus sofre violência dos que querem entrar, e violentos se apoderam dele” (Mt 11, 12).
Ora, em vista da necessidade de coragem e magnanimidade que incumbe ao cristão, o Espírito lhe dá o dom da fortaleza. Esta nem sempre consiste em realizar vultosas e admiradas pelo público, mas não raro implica paciência, perseverança, tenacidade, magnanimidade silenciosas… Pelo dom da fortaleza, o Espírito impele o cristão não apenas àquilo que as forças humanas podem alcançar, mas também àquilo que a força de Deus atinge. É essa força de Deus que pode transformar os obstáculos em meios; é ela que assegura tranqüilidade e paz mesmo nas horas mais tormentosas. Foi ela que inspirou a S. Francisco de Assis palavras tão significativas quanto estas: “Irmão Leão, a perfeita alegria consiste em padecer por Cristo, que tanto quis padecer por nós”.
2.7. Temor de Deus
Para entender o significado desde dom, distingamos diversos tipos de temor: a) o temor covarde ou da covardia;  b) o temor servil ou do castigo; c) o temor filial. Este consiste na repugnância que o cristão experimenta diante da perspectiva de poder-se afastar de Deus; brota das próprias entranhas do amor. Não se concebe o amor sem este tipo de temor.
Com outras palavras: as virtudes afastam, sim, o cristão do pecado, ajudando-o a vencer as tentações. Isto, porém, acontece através de lutas, hesitações e, não raro, deficiências. Ora pelo dom do temor de Deus a vitória é rápida e perfeita, pois então é o Espírito que move o cristão a dizer Não à tentação.
O dom do temor de Deus se prende inseparavelmente à virtude da humildade. Esta nos faz conhecer nossa miséria;  impede a presunção e a vã glória, e assim nos torna conscientes de que podemos ofender a Deus; daí surge o santo temor de Deus. O mesmo dom também se liga à virtude da temperança; esta modera a concupiscência e os impulsos desordenados do coração; com ela converge o temor de Deus, que, por impulso de ordem superior, modera os apetites que poderiam ofender a Deus.
Os santos deram provas sensíveis de santo temos de Deus. Tenha-se em vista S. Luís de Gonzaga, que, conforme se narra, derramou copiosas lágrimas certa vez quando teve que confessar suas faltas,… faltas que, na verdade, dificilmente poderiam ser tidas como pecados. Para o santo, essas pequeninas faltas eram sinais do perigo de poder um dia afastar-se de Deus. Ora, para quem ama, qualquer perigo deste tipo tem importância.
Eis, em grandes linhas, o significado dos dons do Espírito Santo na vida cristã. São elementos valiosos para o progresso interior, elementos que o Espírito mais e mais utiliza, se o cristão procura amar realmente a Deus e ao próximo e jamais dizer um Não consciente às inspirações da graça.
Revista “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Revista nº. 479, Ano 2002, Pág. 163.
1 Sobrenatural não quer dizer portentoso ou maravilhoso, mas designa o que ultrapassa as exigências de qualquer natureza criada,… o que é dado gratuitamente por Deus. É sobrenatural, portanto, a elevação do homem à filiação divina ou à comunhão de vida com o próprio Deus a fim de chegar à visão de Deus face-a-face.
1 A palavra sabedoria vem do saber, derivado do verbo latino sapere, que significa “ter gosto de…” – O vocábulo português sabor se origina do latino sapor, que é da mesma raiz que sapere”.
1 Eis o texto de Ecl 3, 1-8:
“Todas as coisas têm o seu tempo, e tudo o que existe debaixo dos céus tem a sua hora.
Há tempo para nascer, e tempo para morrer.
Tempo para plantar, e tempo para arrancar o que se plantou.
Tempo para matar, e tempo para dar vida.
Tempo para destruir, e tempo para edificar.
Tempo para chorar, e tempo para rir.
Tempo para se afligir, e tempo para dançar.
Tempo para espalhar pedras, e tempo para as ajuntar.
Tempo para dar abraços, e tempo para se afastar deles.
Tempo para adquirir, e tempo para perder.
Tempo para guardar, e tempo para atirar fora.
Tempo para rasgar, e tempo para coser.
Tempo para calar, e tempo para falar.
Tempo para amar, e tempo para odiar.
Tempo para a guerra. e tempo para a paz”

Súmula das Doutrinas Protestantes

Protestantismo representa hoje uma realidade assaz complexa, ou seja, o bloco de aproximadamente 200.000.000 de cristãos que não pertencem nem à Igreja tradicional, cuja Cabeça visível reside em Roma, nem à facção oriental (em parte dita ortodoxa, em parte nestoriana, monofisita; cf. «P. R.» 10/1958, qu. 10), facção que se separou do tronco primordial em etapas sucessivas desde o séc. V até o séc. XI.
O iniciador do movimento protestante é Martinho Lutero, que, a partir de 1517, pretendeu reformar o credo e as instituições cristãs, e por isto se afastou da Igreja, dando início ao Luteranismo. Ao lado deste, enumeram-se o Calvinismo (que absorveu o Zwinglianismo ou a reforma de Zwingli em Zürich, Suíça), movimento afim ao de Lutero, empreendido por Calvino em Genebra, Suíça, e o Anglicanismo, reforma congênere oriunda na Inglaterra. Estas três denominações (Luteranismo, Calvinismo e Anglicanismo) representam o que se pode chamar «Igrejas protestantes tradicionais», todas iniciadas no séc. XVI (os Anglicanos nem sempre aceitam a designação de «protestantes», embora, por seus princípios doutrinários, se filiem ao Protestantismo).
Das três Igrejas protestantes derivaram-se centenas de sociedades menores, que não mais recebem o nome de Igrejas, mas o de seitas, visto serem movidas por espírito diverso do das Igrejas; são reformas da reforma, dissidências da dissidência: metodistas, batistas, congregacionais, quakers, etc. (sobre a distinção entre a Igreja e seita, veja «P. R.» 6/1957, qu. 8).
Esses múltiplos grupos protestantes autônomos professam credos diferentes, chegando alguns a negar a própria Divindade de Cristo; o liberalismo doutrinário predomina entre eles. Contudo podem-se enunciar três grandes teses como características dos diversos tipos de Protestantismo: 1) a justificação pela fé sem as obras; 2) a Bíblia como única fonte de fé, interpretada segundo o «livre exame»; 3) a negação de intermediários entre Deus e o crente.
1. Três pontos capitais
a) A justificação pela fé sem as obras
Lutero considerava esta tese como central dentro da sua ideologia: «artigo do qual nada se poderá subtrair, ainda que o céu e a terra venham a desmoronar» (Artigos de Schmakalde, 1537).
Qual o significado de tal proposição e donde lhe vem a sua importância no Protestantismo?
A resposta não é difícil; deriva-se da situação psicológica em que o reformador se achou em certa fase de sua vida. Lutero fez-se frade agostiniano, mais movido pelo medo (tendo escapado à fulminação por um raio, prometeu entrar no convento) do que por autêntica vocação. No claustro, experimentou a concupiscência, à qual opôs penitência e ascese. Sentindo, porém, continuamente as más tendências em sua natureza, entrou em angustiosa crise: queria libertar-se da concupiscência, mas não o conseguia… Um belo dia julgou ter encontrado a solução: apelando para São Paulo (principal mente para a epístola aos Romanos), começou a ensinar que a concupiscência é realmente invencível; por conseguinte vão é procurar dominá-la mediante penitência e boas obras. Nem Deus requer isto do homem; basta aceitar Cristo como Salvador, isto é, crer com confiança que Deus Pai, em vista dos méritos de Jesus, não leva em conta os pecados do indivíduo; a fé confiante («fiducial»), independentemente de boas obras, faz que Deus nos recubra com o manto dos méritos de Cristo, declarando-nos justos. Tal declaração é meramente legal ou extrínseca, não afeta o interior da natureza humana; esta, mesmo depois de «justificada», nada pode fazer para obter a salvação eterna, pois se acha como que aniquilada pelo pecado, reduzida à categoria de instrumento inerte nas mãos de Deus ou de serra nas mãos do carpinteiro (assim se formula a famosa tese do «servo arbítrio» de Lutero).
Neste quadro de idéias, vê-se que não se pode falar de cooperação do homem com a graça de Deus, nem de méritos. Lutero e Calvino reconheciam que a caridade nasce da fé, como a maçã provém da macieira, mas (acrescentavam) não são a caridade e suas obras que importam (ou ao menos… que importam em primeiro lugar); o crente pode estar certo da salvação eterna em qualquer fase da sua vida, desde que mantenha a sua fé confiante. Donde o famoso adágio de Lutero «Pecco fortiter, sed fortius credo. — Peco intensamente, mas ainda mais intensamente creio» (carta a Melancton, 1º de agosto de 1521); com estas palavras, o reformador não recomendava o pecado, mas queria dizer que a simples confiança no Salvador ainda tem mais peso no processo de salvação do que a culpa do homem. Calvino, do qual muito se inspiraram os presbiterianos e batistas, acentuou ao extremo estas idéias, afirmando que Deus predestina infalivelmente para a salvação eterna, de sorte que, se o homem não perde a sua fé, pode ter certeza de que chegará à bem-aventurança celeste (donde se deriva para o crente suavíssimo reconforto).
b) A Bíblia, única fonte de fé, sujeita ao «livre exame»
A fim de dar fundamento à inovadora tese da justificação pela fé fiducial, os reformadores precisavam de fazer uma revisão nas fontes da Revelação cristã. Estas são a Escritura Sagrada e a Tradição oral apregoada pelo magistério da Igreja. Resolveram, pois, rejeitar a Tradição ou o magistério, para só dar crédito à Palavra escrita ou à Bíblia. Esta, para o protestante, tudo contém: é, por si mesma, clara em tudo que concerne a salvação eterna.
Calvino se exprime a respeito em termos muito fortes:
«Quanto à objeção que os católicos nos fazem, perguntando-nos de quem, donde e como temos a convicção de que a Escritura provém de Deus, é semelhante à questão de quem quisesse saber como aprendemos a distinguir a luz das trevas, o branco do negro, o doce do amargo. A Escritura, com efeito, tem seu modo de se manifestar, modo tão notório e seguro que se compara à maneira como as coisas brancas e negras manifestam sua cor e as coisas doces e amargas manifestam o seu sabor» (Institution chrétienne I 7 & 3).
Para ajudar a pessoa a ler e entender a Bíblia, o Espírito Santo dá seu testemunho interior, iluminando a mente e dirigindo o coração. Em consequência, cada crente tem o direito de «deduzir» da Bíblia as verdades que ele, em seu bom senso, julgue haverem sido a ele ensinadas pelo Espírito Santo.
Assim o Protestantismo atribui ao individuo uma prerrogativa que ele nega à Igreja visível e hierárquica: esta pode errar no seu ensinamento, corrompendo o depósito da fé (apesar das promessas de Cristo, seu Fundador); toca, por conseguinte, a cada cristão, guiado pelo Espírito Santo, encontrar de novo a Palavra de Deus perdida pela Igreja…
A reação do crente protestante contra o magistério eclesiástico é, aliás, típica expressão da mentalidade da Renascença: no séc. XVI o homem criou, sim, uma consciência nova dentro de si, tendente a pôr em cheque qualquer tipo de autoridade, para mais exaltar o individuo. «O que rejeito absolutamente é a autoridade», escrevia Alexandre Vinet (1797-1847), chefe do movimento dito «da Igreja Livre» na Suíça ocidental calvinista. O Evangelho, para Lutero, devia ser não somente uma escola de obrigações, mas também uma via de libertações (entre as quais, a libertação frente à autoridade religiosa visível).
c) A negação de intermediários entre Deus e o crente
O Protestantismo dá valor decisivo à atitude do individuo diante de Deus; segundo a ideologia reformada, é a fé subjetiva nos méritos de Cristo que garante a salvação. Em consequência, pouca margem aí resta para se conceberem dons de Deus que permaneçam extrínsecos ao indivíduo e a este comuniquem os méritos do Salvador. Em outros termos: não têm cabimento canais transmissores da graça, como sejam ritos e práticas a serem administrados por uma sociedade visível (a Igreja) e por uma hierarquia de ministros oficialmente instituída. Para o protestante, entre o homem justificado pela fé e Deus, não há Sacerdote senão o Senhor Jesus invisível que está nos céus (a prolongação da Encarnação através da Igreja e dos sacramentos é depreciada); também não há outro Mestre senão o Espírito Santo, que fala nas Escrituras e no íntimo de cada alma, sem se servir de algum magistério viável e objetivo.
Note-se, em particular, a repercussão destas idéias nos conceitos de sacramentos e Igreja.
O número dos sacramentos foi notavelmente diminuído pelos doutores do Protestantismo. Dentre os sete tradicionais, Calvino chegou a admitir dois apenas: o Batismo e a Ceia. Quanto à função dos sacramentos, os reformadores nos diriam que estes não são portadores da graça, mas apenas sinais que, lembrando as promessas da benevolência divina, excitam a fé (ou confiança) nessas promessas; estimulada por tais sinais, é a fé que produz a santificação do crente. Os sacramentos portanto não exercem, como se diz em linguagem teológica, causalidade nem física nem moral no processo de santificação; a sua influência fica limitada ao setor psicológico (recordam a palavra de Deus…).
No Calvinismo, torna-se mesmo impossível que a graça esteja associada a algum sinal objetivo, pois ela só é dada aos predestinados; a quem não pertença ao número destes, não adianta recorrer a algum rito sensível. Lutero, um pouco menos inovador neste ponto, afirmava que o Batismo confere a santidade, mas só o faz mediante a fé: «Não o sacramento, mas a fé no sacramento é que justifica. — Non sacramentum, sed fides in sacramento iustificat», escrevia o reformador ao Cardeal Caetano. O Zwinglianismo empalidecia ainda mais o papel dos sacramentos, reduzindo-os a meros testemunhos da fé capazes de unir os homens entre si: pelos sacramentos, ensinava Zwingli, o crente atesta e comprova à Igreja a sua fé, sem que da Igreja receba sequer o selo ou a comprovação da fé.
A prevalência do indivíduo sobre a coletividade se exprime com não menor clareza no conceito protestante de Igreja. Esta, conforme os reformadores, não é um corpo visível, mas sociedade invisível; só uma coisa impede que alguém a ela pertença: o pecado. Quem não se deixa contaminar por este, torna-se membro da Igreja, independentemente dos quadros externos nos quais os crentes professam a sua fé. Em geral, dizem os protestantes que a Igreja visível se corrompeu e extinguiu no séc. IV, sob o Imperador Constantino, dada a colaboração do Estado e da Igreja, pois então se introduziram nos mais íntimos redutos do Cristianismo doutrinas e costumes pagãos. Subsiste, porém, a Igreja invisível, a qual continua a vida da comunidade primitiva de Jerusalém. Ora seria essa Igreja invisível que vai tomando corpo nas denominações protestantes a partir do séc. XVI…
Se agora se pergunta como é governada a Igreja invisível, toca-se uma questão árdua para o Protestantismo: este, de um lado, rejeita o Papado e, de outro lado, afirma que todos os fiéis são sacerdotes. Em consequência, não restam critérios muito seguros para se constituir o governo da igreja… Donde a multiplicidade de soluções: há denominações protestantes dirigidas por seus «bispos» (tais são o episcopalismo anglicano, o metodismo…), bispos porém que são mais mentores dos .crentes do que sacerdotes ou ministros dos meios de santificação; há as também dirigidas por presbíteros (o presbiterianismo, por exemplo), e há-as dirigidas por meros delegados da coletividade ou da congregação (congregacionalismo, que reproduz o sistema democrático no setor religioso). Vários grupos protestantes não concebem mesmo dificuldade em admitir a autoridade mais ou menos absoluta dos governos civis no que diz respeito à vida temporal da Igreja (o que resulta em secularização da face visível do Cristianismo).
Expostas sumariamente as três características da ideologia protestante, incumbe-nos agora analisar o seu significado.
2. Uma estimação da doutrina
a) A justificarão pela fé sem as obras
1. Não há dúvida, a Escritura ensina que a remissão dos pecados é gratuitamente outorgada aos homens pelos méritos de Jesus Cristo (cf. Rom 5,8s); o homem não pode merecer o perdão, mas tem que o aceitar contritamente, crendo no amor de Deus e entregando-se humilde a esse amor. Contudo a Escritura ensina outrossim que o perdão outorgado por Deus não é mera fórmula jurídica em virtude da qual não nos seria mais levado em conta o pecado, pecado que, apesar de tudo, ficaria inamovível a contaminar a alma. Não; justificação, segundo as Escrituras, é regeneração (cf. Jo 3,3.5; Tit 3,5), elevação à dignidade de filhos de Deus não nominais apenas, mas reais (cf. 1Jo 3,1), de modo a nos tornarmos consortes da natureza divina (cf. 2 Pdr 1,4), capazes de produzir atos que imitem a santidade do Pai Celeste (cf. Mt 5,48). Se, por conseguinte, Deus, ao nos perdoar as faltas, nos concede uma nova natureza, está claro, conforme as Escrituras mesmas, que as obras boas que estejam ao alcance desta nova natureza, devem pertencer ao programa de santificação do cristão; elas se tornam condição indispensável para que alguém consiga a vida eterna. Deus não pode deixar de exigir tais obras depois de nos haver concedido o princípio capaz de as produzir.


É óbvio que essas obras boas não constituem o pagamento dado pelo homem em troca da graça de Deus, nem são algo que a criatura efetue independentemente dos méritos de Cristo Salvador, mas são os frutos necessários da ação de Deus (ou da graça) no homem regenerado, são concretizações dos méritos do Salvador; na verdade, é Cristo quem vive no cristão e neste exerce seu influxo vital, como a cabeça nos seus membros e como o tronco da videira nos seus ramos (cf. Gál 2,20; Jo 15,1s).
São Paulo, na epístola dos Romanos, tanto inculca a justificação pela fé sem as obras, porque tem em vista a primeira conversão ou a conversão do pecador a Deus (claro está que esta não pode ser o resultado de obras meritórias prévias). São Tiago, porém, que visa propriamente o desabrochar da vida cristã após a conversão, inculca fortemente a necessidade das boas obras (por isto a epistola de Tiago muito desagradava a Lutero, que quis negar a sua autenticidade).
Quanto à concupiscência que permanece no cristão por toda a vida, ela não constitui pecado enquanto o indivíduo não lhe dá consentimento; por muito intensa que seja, a graça do Redentor é certamente capaz de triunfar sobre ela. O fato de que a Escritura a chama «pecado» (cf. Rom 7,20), explica-se por estar a concupiscência intimamente ligada ao pecado como consequência deste.
De resto, na vida cotidiana os protestantes valorizam altamente as boas obras; falam então linguagem muito semelhante à dos católicos.
b) A Bíblia e o livre exame
Já em «P. R.» 7/1958, qu. 2 e 3 foi publicada longa explanação sobre a Tradição oral como fonte de fé e necessário critério de interpretação da Bíblia Sagrada. O valor da Tradição se explica pelo fato de que a Revelação oral antecedeu a redação das Escrituras e nem foi, por inteiro, consignada nos livros sagrados (os hagiógrafos nunca tiveram a intenção de confeccionar um manual completo dos ensinamentos revelados); donde se vê quão alheio é ao espírito mesmo da Bíblia interpretá-la independentemente da corrente de doutrinas dentro da qual a Escritura se originou, se conservou e sempre se transmitiu.
Ao que foi dito ainda se pode acrescentar a menção de algumas consequências do princípio do livre exame (é pelos frutos que se conhece a árvore!).
Os próprios reformadores e seus discípulos, desejando exaltar a autoridade das Escrituras, tornaram-se deturpadores da Palavra de Deus. Foi, sim, em nome do Antigo Testamento que Lutero permitiu a bigamia a Filipe de Hessen. É em nome das Escrituras que os fundadores de seitas vão ensinando teses fantasistas e contraditórias sobre a data do fim do mundo (tenham-se em vista os Adventistas, os Testemunhas de Jeová, os Amigos do homem, de que trata «P. R.» 14/1959, qu. 10). Em nome do livre exame da Bíblia os críticos protestantes têm rejeitado inteiras seções ou até livros escriturísticos; chegam a negar a Divindade de Cristo (o primeiro autor que negou a plena veracidade dos Evangelhos, foi o protestante H. S. Reimarus +1768).
De resto, verifica-se que as comunidades de crentes tendo abandonado a venerável Tradição transmitida desde os inícios do Cristianismo, ainda, e apesar de tudo, seguem uma tradição, … tradição evidentemente humana, a que deu início tal ou tal fundador de seita. Criou-se em cada denominação de «reformados» uma tradição particular ou uma via própria de interpretação da Bíblia.
É a rejeição de todo magistério munido da autoridade do próprio Deus que gera instabilidade nas comunidades protestantes, ocasionando a criação de novas e novas seitas. A razão destas múltiplas reformas não será o fato de que nenhuma delas é realmente guiada pelo Espírito Santo, mas todas são obra meramente humana? Aliás o próprio Lutero já verificava em seus tempos: «Há tantos credos quantas cabeças há».
Alexandre Vinet, já citado, afirmava por sua vez no século passado:
«Para mim, o Protestantismo é apenas um ponto de partida; a religião fica muito além dele… A reforma será uma exigência permanente dentro da Igreja; ainda hoje a reforma está por se fazer».
A experiência de 400 anos mostrou que se volta contra os próprios irmãos separados o principio com que estes quiseram outrora impugnar os católicos: «Mais vale obedecer a Deus do que aos homens» (At 5,29).
c) A negação de intermediários entre Deus e o crente
Esta posição acarreta, como dizíamos, a negação de várias instituições que se tornaram clássicas no Cristianismo: os sacramentos concebidos como canais da graça, a intercessão dos santos, o sacerdócio oficial e hierárquico, a visibilidade da Igreja, etc.
Alguns destes temas já foram diretamente abordados em «P.R.»: assim o significado dos santos na piedade cristã, em «P. R.» 13/1959, qu. 5; a autoridade da canonização dos santos, em «P.R.» 13/1959, qu. 5; a necessidade do culto externo, em «P.R.» 15/1959, qu. 3; a instituição de um chefe visível e de um magistério infalível dentro da Igreja, em «P.R.» 13/1959, qu. 2 e 14/1959, qu. 3.
Seguem-se três observações aptas a mais evidenciar o erro radical contido no princípio protestante:
i) a rejeição dos sacramentos e do sacerdócio hierárquico contradiz à lei geral que Deus sempre quis observar nas suas relações com o homem: assim como na plenitude dos tempos o Senhor atingiu a criatura mediante o mistério da Encarnação, assim antes e depois desta Ele veio e vem sob sinais sensíveis; principalmente no Novo Testamento a dispensação das graças conserva a estrutura da Encarnação: os sacramentos e sacramentais são matéria consagrada que prolonga e desdobra a estrutura do Verbo Encarnado. Como o corpo de Jesus recebeu outrora a vida divina e a comunicou aos homens seus contemporâneos, assim os elementos corpóreos (água, pão, vinho, óleo, palavras e gestos do homem…) vêm a ser, nos sacramentos, os canais que contêm e transmitem a graça de Deus; não os poderíamos reduzir à categoria de meros estimulantes da memória, vazios de conteúdo sobrenatural, sem quebrar a harmonia do plano da salvação.
ii) Nos desígnios de Deus, a santificação do homem sempre foi concebida comunitàriamente, em oposição a qualquer individualismo. O Criador houve por bem, no inicio da história, incluir todos os homens no primeiro Adão; quis outrossim restaurar todos conjuntamente em Cristo; consequentemente santifica-nos hoje por meio de uma coletividade, que é a Igreja, caracterizada por sinais objetivos e por um ministério visível, fora do qual ninguém pode pretender encontrar o Cristo. — Exaltando o indivíduo a ponto de relegar para plano secundário a comunidade, o Protestantismo vem a ser autêntico produto da mentalidade subjetivista e antropocêntrica do Renascimento.
iii) A Reforma pretende corresponder à Igreja primitiva, anterior à corrupção que «paganizou» o Evangelho… Esta pretensão é tão vã que os mestres protestantes se têm visto obrigados a fazer recuar constantemente o período da «grande corrupção»: ao passo que os primeiros reformadores a colocavam no séc. IV, outros foram retrocedendo até os tempos de S. Cipriano (+258), S. Ireneu (+ cerca de 202), Clemente Romano (+102?) ou até a geração apostólica. O famoso crítico Harnack (+1930) chegava a dizer que já os Apóstolos perverteram o Evangelho de Cristo — o que é evidentemente absurdo, pois não conhecemos o Evangelho de Cristo senão através da pregação e dos escritos dos Apóstolos; Harnack, porém, era obrigado a proferir tal contrassenso, porque reconhecia claramente que a Igreja Católica atual corresponde fielmente à Igreja primitiva ou, como dizia ele, que «Cristianismo, Catolicismo e Romanismo constituem uma identidade histórica perfeita» (Theologische Literaturzeitung, 16 jan. 1909).
Dom Estêvão Bettencourt (OSB)

A Comunhão sob as duas espécies

            A Eucaristia é a celebração central da Igreja. Na verdade, a Igreja não celebra a si mesma, e, sim a história a que ela se deve, a esperança que a anima, a vinda do Senhor, por meio da qual ela se deixa transformar; no entanto, nessa celebração ela representa, ao mesmo tempo, o que ela deveria ser: uma comunidade que dá testemunho de Jesus Cristo e do reino de Deus por ele anunciado, que tenta viver esse testemunho no serviço ao próximo e que representa simbolicamente, na celebração da liturgia, ambas as coisas- o testemunho da palavra e o testemunho da ação. Da liturgia faz parte tanto o anúncio da Palavra quanto o partir do pão. Assim, a Eucaristia também é imagem para Igreja.
            Com imagem para a Igreja, a Eucaristia também diz algo sobre sua estrutura. Desde os dias da comunidade primitiva em Jerusalém até hoje, a Eucaristia é celebrada em comunhões de mesa menores: “Diariamente permaneciam unânimes no templo, nas [diversas] casas, porém, repartiam o pão” (At 2,46). Aí se revela uma estrutura básica de Igreja: Igreja é reunião, comunhão. Isso, porém, ela não é como reunião única, que abrange a todos os membros (que, quando muito, por motivos práticos, dependeria de filiais), e, sim, ela o é, de antemão, como comunidade de comunidades, nas palavras do Concílio Vaticano II: como comunidade de “Igrejas parciais”.
            “Estas [as comunidades locais] são em seu lugar o Povo novo chamado por Deus(…). Nelas se reúnem os fiéis pela pregação do Evangelho de Cristo. Nelas se celebra o mistério da Ceia do Senhor (…). Nessas comunidades, embora muitas vezes pequenas e pobres, ou vivendo na dispersão, está presente Cristo” (LG 26).
            Se na Eucaristia a Igreja é apresentada como comunidade, se Igreja é, essencialmente, comunidade de comunidade e se a Igreja conhece um ministério de serviços que serve à congregação para a comunhão e à unidade entre as comunidades, então se conclui logicamente que para a celebração da Eucaristia se precisa da direção por meio de um ministro ordenado. Pois a ordenação serve à congregação e à unidade na comunidade eucarística, e ela estabelece a conexão entre esta uma e as muitas celebrações eucarísticas da Igreja.
            O sinal básico desse sacramento é a comunhão de mesa: pão e vinho são repartidos, a palavra interpretativa fala da última ceia de Jesus e convida: “Tomai, comei, (…) bebei” (Mt 26,26s). A Eucaristia cristã, a “Ceia do Senhor” (1Cor 11,20), tem sua origem no cear em Israel, que une os participantes entre si e com Deus; nas ceias de Jesus com os discípulos, que eram sinais realizadores de seu convite para o reino de Deus e de sua pró-existência (sua existência em favor dos outros); na última ceia de Jesus, na qual sua pró-existência em face da morte iminente se condensou na entrega extrema e na experiência de sua ressurreição e de sua nova vinda, que os discípulos fizeram “ao partir o pão” (Lc 24,35). Desde a aliança do Sinai até a congregação da comunidade na experiência pascal a Ceia sempre é sinal da aliança: A aliança de Deus com os homens se realiza quando homens se aliam entre si. No comer e beber em comum se recebe a vida, celebra-se a aliança que possibilita vida.
            Quanto ao tema proposto, citado acima: a Comunhão sob duas espécies podemos reportar ao:
Concílio de Trento – Em algumas partes do mundo, alguns ousam temerariamente afirmar que o povo cristão deve receber o santo sacramento da Eucaristia sob as duas espécies do pão e do vinho e fazem comungar em geral a assembléia dos leigos não só a espécie do pão, mas também com a do vinho, inclusive depois da refeição ou doutro modo sem jejum. Eles sustentam obstinadamente que este é o modo de se comungar, opondo-se ao louvável costume da Igreja, justificado também racionalmente, que de modo condenável procuram reprovar como sacrílego:
            “por isso, este concílio… declara, decreta e define que, se bem que Cristo tenha instituído e administrado depois da refeição aos apóstolos este venerando sacramento sob as espécies do pão e do vinho, não obstante isso, a admirável autoridade dos sagrados cânones e o autorizado costume da Igreja têm declarado e declaram que este sacramento não deve ser administrado depois da refeição, nem a fiéis que não estão em jejum, salvo no caso de doença ou de outra necessidade, concedido ou admitido pelo direito ou pela Igreja” (DH, 1198).
            E como este costume foi introduzido, com razão para evitar perigos e escândalos, com análoga o maior razão foi introduzido e observado este outro: “se bem que na Igreja primitiva este sacramento era recebido pelos fiéis sob ambas as espécies, mais tarde, porém, era recebido pelos que produzem- o sacramento- sob ambas espécies, mas pelos leigos somente sob a espécie de pão, pois é preciso crer com toda a firmeza e sem sombra de dúvida que o corpo e o sangue de Cristo estão verdadeiramente contidos, na sua integridade, tanto sob a espécie do pão, como sob a do vinho. Portanto, visto que foi introduzido com boa razão pela Igreja e pelos santos Padres e observada durante muitíssimo tempo, este costume deve ser considerado como uma lei que não pode ser reprovada nem modificada arbitrariamente, sem o consentimento da Igreja” (DH, 1199).
            Contudo, “é errôneo sustentar que a observância deste costume ou lei é sacrílega ou ilícita; e os que se obstinam em sustentar o contrário devem ser tratados como hereges…” (DH, 1200).
Código de 1917 – Sanctissima Eucharistia sub sola specie panis praebeatur (Cân. 852).
Concílio Vaticano II – “A comunhão sob as duas espécies, firmes os princípios dogmáticos estabelecidos pelo Concílio de Trento pode ser permitida, quer aos clérigos e religiosos, quer aos leigos, nos casos a serem determinados pela Santa Sé e a critério do bispo, como aos neo-sacerdotes na missa de sua ordenação, aos professos na missa de profissão religiosa, aos neófitos na missa que se segue ao batismo” (SC 55).
Código de 1983 – “Sacra communio conferatur sub sola specie panis aut, ad normam legum liturgicarum, sub utraque specie; in casu autem necessitatis, etiam sub sola specie vini” (Cân.925).
            O modo ordinário de administração continua a ser sob a espécie de pão, seguindo uma disciplina multissecular fundada na afirmação dogmática de plena e perfeita presença de Jesus Cristo em cada uma das espécies sacramentais (Conc. de Trento,sess.XXI), e recomendada pelo perigo de derramamento do sanguis, assim como pela natural repugnância a que poderia dar lugar o comungar do mesmo cálice. Estes dois dados (perigo de derramamento e natural repugnância) serão tidos em conta nas normas litúrgicas que o Cânon manda observar.
            A Instrução da Sagrada Congregação para o Culto Divino Sacramentali Communione, de 29 de junho de 1970, permitiu que as Conferências Episcopais ampliassem essa faculdade dos Ordinários locais. Em setembro do mesmo ano, a comissão Central da CNBB decidiu deixar nas mãos dos próprios Bispos diocesanos a determinação de novos casos de comunhão sob duas espécies, “ubi ratio pastoralis suadeat” (=onde o aconselhar uma razão pastoral). Recomendou, porém, que não se usasse essa forma quando os grupos forem muito numerosos ou heterogêneos.
Introdução Geral do Missal Romano- A Comunhão realiza mais plenamente o seu aspecto de sinal sob as duas espécies. Sob esta forma se manifesta mais perfeitamente o sinal do banquete eucarístico e se exprime de modo mais claro a vontade divina de realizar a nova e eterna Aliança no Sangue do Senhor, assim como a relação entre o banquete eucarístico e o banquete escatológico no Reino do Pai (IGMR, 281).
            O Número 283 da IGMR nos diz que a comunhão sob as duas espécies é permitida nos seguintes casos:
a)      Aos sacerdotes que não podem celebrar ou concelebrar o santo sacrifício;
b)      Ao diácono e a todos que exercem algum ofício na Missa;
c)      Aos membros “da comunidade”, aos alunos dos Seminários, a todos os que fazem exercícios espirituais ou que participam de alguma reunião espiritual ou pastoral.
        O Bispo diocesano pode baixar normas a respeito da Comunhão sob as duas espécies para a sua diocese, a serem observadas inclusive nas igrejas dos religiosos e nos pequenos grupos. Ao mesmo Bispo concede a faculdade de permitir a Comunhão sob as duas espécies, sempre que isso parecer oportuno ao sacerdote a quem, como pastor próprio, a comunidade está confiada, contando que os fiéis tenham boa formação a respeito e esteja excluído todo perigo de profanação do Sacramento, ou o rito se torne mais difícil, por causa do número de participantes ou por outro motivo.
       Contudo, quanto ao modo de distribuir a sagrada Comunhão sob as duas espécies aos fiéis, e à extensão da faculdade, as Conferências dos Bispos podem baixar normas, a serem reconhecidas pela Sé Apostólica. Conforme proposta da 33ª Assembléia Geral da CNBB, aprovada pela Sé Apostólica, a ampliação do uso da Comunhão sob as duas espécies pode ocorrer nos casos seguintes:
1.A todos os membros dos Institutos religiosos e seculares, masculino e femininos, e a todos os membros das casas de formação sacerdotal ou religiosa, quando participarem da Missa da comunidade.
2. A todos os participantes da missa da comunidade por ocasião de um encontro de oração ou de uma reunião pastoral.
3. A todos os participantes em Missas que já comportam para alguns dos presentes a comunhão sob as duas espécies, conforme o n.243 dos Princípios e Normas para o uso do Missal Romano:
a. Quando há uma Missa de batismo de adulto, crisma ou admissão na comunhão da igreja;
b. Quando há casamento na Missa;
c. Na ordenação de diácono;
d. Na benção da Abadessa, na consagração das Virgens, na primeira profissão religiosa, na renovação da mesma, na profissão perpétua, quando feitas durante a Missa;
e. Na Missa de instituição de ministérios, de envio de missionários leigos e quando se dá na Missa qualquer missão eclesiástica;
f. Na administração do viático, quando a Missa é celebrada em casa;
g. Quando o diácono e os Ministros comungam na Missa;
h. Havendo concelebração;
i. Quando um sacerdote presente comunga na Missa;
j. Nos exercícios espirituais e nas reuniões pastorais;
l. Nas Missas de Jubileu de sacerdócio, de casamento ou de profissão religiosa;
m. Na primeira Missa de um neo-sacerdote;
n. Nas Missas conventuais ou de uma “Comunidade”;
4. Na ocasião de celebrações particularmente expressivas do sentido da comunidade cristã reunida em torno do altar.
Instrução Redemptionis Sacramentum Para administrar a santa comunhão aos fiéis leigos as duas espécies, dever-se-á de forma apropriada levar em conta as circunstâncias, cabendo antes de tudo aos bispos diocesanos fornecer uma avaliação sobre tais circunstâncias. Seja totalmente excluída quando houver o risco, mesmo que mínimo, de profanação das sagradas espécies[1] (Redemptionis Sacramentum,101). Para uma melhor coordenação, é preciso que as Conferências dos Bispos publiquem, com a confirmação por parte da Sé Apostólica, mediante a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, as normas relativas sobretudo ao “modo de distribuir aos fiéis a santa comunhão sob as duas espécies e à extensão dessa faculdade”[2].
            Não se administre aos fiéis leigos o cálice, quando esteja presente um número de comungantes tão grande[3] que se torna difícil avaliar a quantidade de vinho necessária para a Eucaristia e houver o risco de “permanecer uma quantidade de Sangue de Cristo superior ao necessário e que deveria ser consumido no término da celebração”[4]; nem também quando o acesso ao cálice só possa ser regulado com dificuldade, ou seja, exigida uma quantidade se poderia ter garantia da proveniência e qualidade, ou onde não haja adequado número de ministros sagrados nem extraordinários da sagrada comunhão providos de uma apropriada preparação, ou onde parte notável do povo continue, por diversas razões, recusando aproximar-se do cálice, fazendo assim que o sinal da unidade acabe de certo modo deixando de existir. (Redemptionis Sacramentum, 103).
Quando a Comunhão é dada sob as duas espécies:
a) Quem serve ao cálice é normalmente o diácono, ou na sua ausência, o presbítero; ou também o acólito instituído ou outro ministro extraordinário da sagrada comunhão; ou outro fiel a quem, em caso de necessidade, é confiado eventualmente este ofício; (IGMR,284).
b) O que por acaso sobrar do precioso Sangue é consumido no altar pelo sacerdote, ou pelo diácono, ou pelo acólito instituído, que serviu ao cálice e, como de costume purifica, enxuga e compõe os vasos sagrados (IGMR, 284).
            Aos fiéis que, eventualmente, queiram comungar somente sob a espécie de pão, seja-lhes oferecida a sagrada Comunhão dessa forma.
As quatro formas de dar a comunhão de duas espécies
            Nos casos em que a comunhão é distribuída sob as duas espécies, “o Sangue de Cristo pode ser bebido diretamente no cálice, por intinção, com a cânula ou com a colher[5]. Quanto à administração da comunhão aos fiéis leigos, os bispos podem excluir a modalidade da comunhão com a cânula ou a colher, quando isso não for costume, mas, permanecendo sempre atento à possibilidade de administrar a comunhão por intinção se tal modalidade for usada, recorra-se a hóstias que não sejam muito finas nem demasiadamente pequenas, e o comungante receba o sacramento do sacerdote somente na boca[6].
            Se pode distinguir quatro formas de dar a comunhão de duas espécies:
a) Beber diretamente do cálice- Quando a Comunhão do cálice é feita tomando diretamente do cálice, prepare-se um cálice de tamanho suficiente (ou vários cálices), tendo-se sempre o cuidado de prever que não sobre do sangue de Cristo do que se possa tomar razoavelmente no fim da celebração. (IGMR, 285). Se a Comunhão do Sangue se faz bebendo do cálice, o comungando, depois de ter recebido o Corpo de Cristo, aproxima-se do ministro do cálice e fica de pé diante dele. O Ministro diz: O Sangue de Cristo; o comungando responde: Amém, e o ministro lhe entrega o cálice, que o próprio comungando, com as mãos leva à boca. O comungando toma um pouco do cálice, devolve-o ao ministro e se retira; o ministro, por sua vez, enxuga a borda do cálice com o purificatório. (IGMR, 285 e 286).
b) Por intinção- Quando a Comunhão se realiza por intinção, preparem-se hóstias que não sejam demasiado finas nem pequenas, mas um pouco mais espessas que de costume, para que possam ser distribuídas comodamente depois de molhadas parcialmente no Sangue. Se a Comunhão do cálice é feita por intinção, o comungando, segurando a patena sob a boca ou outra pessoa segura a patena, aproxima-se do sacerdote, que segura o vaso com as sagradas partículas e a cujo lado tem o ministro sustentando o cálice. O sacerdote toma a hóstia, mergulha-a parcialmente no cálice e, mostrando-a, diz: O Corpo e o Sangue de Cristo; o comungando responde: Amém, recebe do sacerdote o Sacramento, na boca, e se retira. (IGMR, 285 e 286).
c) Com uma Cânula- A Cânula deve ser de prata, tanto a do celebrante (presidente), como a dos fiéis que comungam deste modo, e sempre deve ter um recipiente com água para purificar as cânulas e assim como uma bandeja para colocá-las.
d) Com uma colher- Quando está presente um diácono, ou um outro sacerdote, ou um acólito, ou um outro ministro extraordinário da sagrada comunhão, este trazem em sua mão esquerda o cálice e dão a cada um dos presentes que vão comungar, que assim sustentam a patena de comunhão em suas boca ou um outro segura a patena. O Ministro ordinário ou extraordinário dá com a colherzinha o Sangue de Cristo, dizendo: Sangue de Cristo, e cuidando ao mesmo tempo para não tocar com a colherzinha os lábios ou a língua dos que comungam. Em caso do celebrante (presidente) estar sozinho, distribuirá o Precioso Sangue, depois que tenha terminado de distribuir o Corpo de Cristo.
Cuidados necessários-
a) Não seja permitido que o comungante molhe por si mesmo a hóstia no cálice, nem que receba na mão a hóstia molhada. Que a hóstia para a intinção seja feita de matéria válida e seja consagrada, excluindo-se totalmente o uso do pão não-consagrado ou feito de outra matéria (Redemptionis Sacramentum, 104).
b) Se não for suficiente apenas um cálice para distribuir a comunhão sob as duas espécies aos sacerdotes concelebrantes ou aos fiéis, nada impede que o sacerdote celebrante use mais cálices[7]. De fato, deve ser lembrado que todos os sacerdotes que celebram a santa missa devem comungar sob as duas espécies. Em razão do sinal, é louvável servir-se de um cálice principal maior juntamente com outros cálices de menores dimensões (Redemptionis Sacramentum,105).
c)Abstenha-se de passar o Sangue de Cristo de um cálice para outro após a consagração, para evitar qualquer coisa que possa ser desrespeitosa a tão grande mistério. Para receber o Sangue do Senhor não se usem em nenhum caso canecas, crateras ou outras vasilhas não integralmente correspondentes às normas estabelecidas (Redemptionis Sacramentum,106).
d)Segundo a norma estabelecida pelos cânones, “quem joga as espécies consagradas ou as subtrai ou conserva para fim sacrílego incorre em excomunhão latae sententiae reservada à Sé apostólica; além disso, o clérigo pode ser punido com outra pena, não excluída a demissão do estado clerical”[8]. Se alguém age contra as supracitadas normas, jogando, por exemplo, as sagradas espécies no sacrário num lugar indigno ou no chão, incorre nas penas estabelecidas[9]. Além disso, tenha-se presente, no final da distribuição da santa comunhão durante a celebração da missa, que devem ser observadas as prescrições do Missal Romano e, sobretudo, que aquilo que restar eventualmente do Sangue de Cristo deve ser imediata e inteiramente consumido pelo sacerdote ou, segundo as normas, por outro ministro, enquanto as hóstias consagradas que sobrarem devem ser imediatamente consumidas no altar pelo sacerdote ou levadas a um lugar apropriada, destinado para conservar a Eucaristia[10](Redemptionis Sacramentum,107).
Pe. Jair Cardoso Alves Neto (Arquidiocese de Cuiabá).


[1] Cf. Missale Romanum. Institutio Generalis,n.283.
[2] Cf. ibidem.
[3] Cf. S. Cong.Para O Culto Divino. Instrução Sacramentali Communione, 29 de junho de1970: AAS62 (1970),p.665; Instrução Liturgicae instautariones,n.6ª : AAA62 (1970),p.669.
[4] Missale Romanum. Institutio Generalis,n.285a.
[5] Ibidem,n.245.
[6] Cf. ibidem. Nn.285b e 287.
[7] Cf. ibidem, nn.207 e 285a.
[8] Cf. Código de Direito Canônico,Cân.1367.
[9] Cf. Pont. Cons.Para a Interpretação dos textos legislativos. Responsio ad propositum dubium, 3 de julho de 1999:AAS(1999),p.918.
[10] Cf. Missale Romanum. Institutio Generalis,nn.163e 284.